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  1. POR: CRIS COSTA

    “This is the day, your life will surely change,
    this is the day when things fall into place.” *

    Mauro encaixota todas as suas coisas e cantarolava. Ana, a boneca de pano estava sobre a mochila que o acompanharia na viagem. Conseguira a tão sonhada promoção e assumiria a direção da nova filial da editora. Na noite anterior decidira ir de trem para a nova cidade. No porta-retrato, um Mauro sorridente acompanhado da alegre Laura, com seus longos cabelos negros soltos ao vento. Embalou o mesmo com plástico bolha e o colocou na caixa – COISAS DA SALA.

    Ana com seus olhinhos de botão sorri deprentensiosamente. Foi esse sorriso que ganhou o coração de Laura na quermesse do bairro no dia em que se conheceram. Cinco argolas e uma boneca como prêmio. Mauro blasfema e os amigos riem de sua falta de sorte. Indo em direção ao lixo, ouviu a voz de uma garota de longos cabelos pretos, implorando que não a jogasse fora e que desse a ela aquela linda boneca.
    A boneca de pano foi entregue imediatamente. Assim que recebeu a boneca das mãos de Mauro, Laura beijou o rosto da boneca. Mauro caminhava com os amigos quando ouviu a voz da garota novamente. Quando parou, a garota veio correndo até ele e beijou-lhe a face, e depois sussurou: “Obrigada!”. No sábado seguinte, Mauro viu a garota sentada no banco da praça, lendo um livro e querendo se aproximar perguntou o que houve com a horrorosa boneca.

    - O nome dela é Ana e o meu é Laura – respondeu a garota contando que a boneca estava muito bem vivendo em sua casa.

    Depois a conversa deslanchou e a paixão atingiu os dois em cheio. Ana era uma boneca de pano tão simples, que até este dia Mauro não entendia o que Laura vira de tão especial nela. Ela vestia um vestido florido, sapatinhos de veludo lilás que combinavam com os botões do vestido. Trancinhas de lã amarela complementavam seu visual. Simples como amar Laura.

    No dia do casamento, a dama-de-honra entrou carregando Ana que trazia em seu pulso, amarradas em uma fitinha de cetim as alianças. A boneca de pano que uniu Mauro e Laura não poderia estar ausente naquele tão precioso dia.

    Ana ficava sempre sentada no criado mudo ao lado da pilha de livros de Laura, a maioria destes editados por Mauro. Laura era o sol da vida de Mauro, o farol que guiava seu caminho.

    Um câncer... Nem mesmo ele conseguiu diminuir o brilho de Laura. Ana acompanhava Laura nas sessões de quimioterapia. Seis meses sem nenhuma lamentação. Talvez Ana tenha sido sua confidente, ouvido suas dores, visto suas lágrimas e sentido os temores de Laura. Para Mauro, somente luz e sempre um sorriso nos lábios.

    Laura não se permitia desistir, mas não pode vencer aquela batalha. Em um de seus últimos momentos disse a Mauro:

    - Siga seu caminho! Não pare por mim... Cuide bem da minha boneca e nem pense em jogá-la no lixo – outro sorriso, que mesmo com a perda imensa de peso, continuava lindo – Você saberá quando for à hora dela partir... Sente estarei com você!

    Todas as coisas de Laura foram doadas, exceto a boneca. Seis meses se passaram e agora Mauro estava aprendendo a viver sem Laura. Era hora de seguir seu caminho!

    A boneca de pano estivera com ele sempre, até nas viagens a trabalho a pequena Ana estava com ele. Ele prometera cuidar da boneca e nunca seria capaz de quebrar uma promessa feita a Laura.

    A mudança foi levada por um caminhão pela manhã. Mauro embarcou no trem na mesma tarde. Nunca tinha andado de trem e desde a morte de Laura passou a dar mais importância a novas experiências e às coisas simples da Vida. Conferiu o bilhete e entrou na pequena cabine, já ocupada por um casal e uma menininha de cabelos castanhos longos e cacheados, trajando um vestido florido lilás.

    Ele percebeu que a garotinha o encarava e ele sem graça sorriu para ela. Conversou um pouco com os pais da menina e depois observava a linda paisagem quando a mãozinha da garota tocou a sua.

    - Você já não é muito grande para brincar de boneca? – perguntou ela com toda a inocência e sinceridade de criança.

    - Ana! – ralhou o pai, olhando torto para a garota – Deixa o moço em paz sua enxerida – e voltando os olhos para Mauro – Desculpe! Ela é assim mesmo, impossível!

    A menina se desculpou com um olhar envergonhado. Mauro sentiu um aperto no peito e seus olhos arderam. Ana! Ficou quieto por alguns segundos. Laura! Depois pegou a mochila e retirou a boneca de pano também chamada Ana.

    A Ana de carne e osso agitava os pés suspensos no ar e brincava com as mãos. Delicadamente tocou na mão da menina que levantou os olhos e acompanhou a outra mão de Mauro, a mão que segurava a boneca.

    - Você a quer? – perguntou Mauro sorrindo de verdade – Você a quer de verdade?

    - Ela é a boneca mais linda que já vi! – e encarava a pequena boneca de pano com olhos brilhantes e sonhadores.

    - Então! Ela é sua... – outro sorriso brotou em seus lábios – Pequena Ana lhe apresento a minha Ana.

    Um largo sorriso iluminou ainda mais o rosto da menina que recebeu a boneca das mãos de Mauro e em seguida abraçou a boneca, depositando um beijo no tecido que compunha o rosto.

    - Senhor não precisa disso! – disse a mãe envergonhada pela atitude da filha e também por notar os olhos marejados de Mauro – Não precisa dar a ela...

    - Creio que a minha Ana queira seguir sua viagem, fazer outro alguém feliz... E Ana é a pessoa certa – voltando-se para a garotinha perguntou – Promete que irá cuidar bem dela?

    - Seremos ótimas amigas, as melhores! – respondeu sinceramente, ainda abraçada com a boneca.

    Quando chegaram à estação final, desceram e se despediram. Mauro caminhava, quando ouviu a voz da menina Ana chamando-o. Parou e olhou para ela que ainda segurava a boneca. Ela tocou a mão dele e a puxou para que ele abaixasse. Ana beijou a face de Mauro e ao sair correndo gritou “Obrigada!”.

    Ele observou as Anas até desaparecerem em meio à multidão. Aquele era o dia em que as coisas realmente mudaram, que as coisas voltavam ao seu lugar, logo, a boneca Ana também tinha que seguir seu caminho.


    (* Refrão da música This is the Day da banda The The)

  2. 3 comentários:

    1. Oi Cris
      Tão triste e esperançoso ao mesmo tempo. Você conseguiu dois sentimentos antagônicos.
      Bonito mesmo, parabéns!

    2. Vivi disse...

      Lindo! romântico, e como disse a Medéia, esperançoso e sofrido. Não gostei muito do páragrafo final por um detalhe. Para mim, o texto poderia acabar aqui: "Observou as Anas até que desaparecessem em meio à multidão".
      A mudança, a transformação, a crise e a urgência do seguir em frente já estão subentendidas no texto.

      Beijocas

    3. disse...

      Cris,

      Gostei da história. Como já ressaltei nos demais comentários dos outros textos, esse é um tema que apela para o lado sentimental.
      Se está errado ou não, vai saber.
      A gente escreve com a emoção.
      E ela está presente em todo seu texto.
      Concordo com Vivi sobre o final.
      O ultimo período do parágrafo que desfecha a história poderia ser suprimido, deixando ao leitor a tarefa de imaginar o que poderia ter acontecido.
      No mais, meus parabéns...
      Abs, Rê