por Medéia
“Quase mais antiga que a humanidade, uma velha lenda dizia que os Deuses separaram em dois. Em sua testa ela está e ele a reconhecerá”.
Pesado e quente era o clima em Assuan. Nefer-Hat-Aru, sonolenta, abanava-se deitada sob uma gigantesca sombra artificial feita de papiro e bambus. Algumas de suas escravas núbias, reluzentes sob o escaldante sol, portavam abanadores feitos de penas de aves que realizavam um movimento ondulatório cadenciado, criando uma pequena brisa para sua ama.
Ao lado o Nilo corria, como lava quente descendo a encosta de um vulcão, cintilante e sereno. Pequenos barcos levavam comerciantes enrolados em mantos alvos, que refletiam o sol como um espelho. As mulheres que por ali circulavam, exibiam o busto nu queimado pelo sol, os cabelos trançados ou escondidos por perucas grossas, saiotes do mais puro linho e pouca maquiagem no rosto devido ao sol quente que castigava a tão amada Khemi.
Hat-Aru era muito jovem, tendo saído de sua primeira lua vermelha há pouco tempo, e estava completamente entediada de sua jovem vida de nobre. Tuina sua mais antiga escrava, sua segunda mãe e confidente, voltava com seu suco de damascos e lhe sorria.
- Ainda aborrecida com este tempo quente, Hat-Aru? Posso distraí-la contando histórias de minha terra.
Só se for a lenda dos amantes, Tuina. – disse animada a garota.
- Novamente ama? Você realmente gosta desta história.
- Fico pensando se algum dia encontrarei aquele que amo. Se o sinal em sua testa me mostrará o amor e acabará com meu enfado.
Neste momento, um jovem escravo correndo, aproximou-se da jovem ama.
- Senhora, seu pai, meu amo, acaba de aportar com seu barco.
A garota, esquecendo as boas maneiras que uma nobre deveria ter, saltou e correu em direção ao porto, fazendo com que suas escravas a seguissem. Apenas Tuina, devido a idade, manteve seu ritmo lento até o porto.
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O barco de Merkeset não era grandioso, mas era tido como o mais rápido do reino. O Senhor Merkeset era ainda jovem e belo, de porte alto e vigoroso, pele adamascada, olhos da cor da folha do papiro. Levava no peito um belo colar de lápis-lazuli dado por sua falecida esposa Tyi. Vestia um manto branco que o protegia do sol escaldante. Estava dando ordens para descarregar os novos escravos eunucos que comprara quando ouviu sua filha Hat-Aru lhe chamando. Correndo ela se aproximou do barco. Realmente era difícil ensinar boas maneiras àquela garota, mas ele a amava muito por isso permitia seus disparates.
Hat-Aru subiu ao barco correndo e antes de chegar ao seu pai e abraçá-lo esbarrou com o grupo de novos escravos eunucos que Merkeset trazia. Corria tanto que o impacto com um dos escravos quase lhe derrubou. Se não fosse o próprio escravo segurá-la, Hat-Aru teria caído ao chão, ou pior, poderia ter sido derrubada pela amurada.
Um grande e forte servo de seu pai já levantava o chicote para bater no jovem escravo por se atrever a pôr as mãos em sua ama, quando Merkeset o impediu com um grito.
Hat-Aru ainda tonta pelo impacto olhou para cima e encontrou um belo e jovem rosto masculino a olhando preocupado. Nariz reto e boca cheia, queixo firme e liso, olhos amendoados e amarelos e um pequeno sinal tatuado na testa. Quando seus olhos se encontraram os dois pareciam estar em outro mundo. Hat-Aru só percebeu seu pai lhe falando quando ele a tocou.
- Você está bem, minha filha? - um preocupado Merkeset a segurava agora.
- Sim, meu pai, eu não devia ter corrido, mas sua chegada me alegrou. Só fiquei um pouco tonta com a batida. – aninhando-se nos braços de seu pai, a garota ainda olhava o jovem escravo.
- Como é seu nome, jovem escravo? – perguntou Merkeset ao rapaz.
- Nimmur, senhor. E peço desculpas por tocar sua filha.
- Não se preocupe rapaz, você na verdade a salvou de cair do barco. – Encarando Hat-Aru, perguntou então: - O que acha de ganhar como presente este eunuco, minha filha?
O olhar de surpresa da garota não se devia ao presente que o pai lhe dava, estava acostumada com eles, mas sim ao fato de Nimmur ser eunuco. Como podia não ter as feições andróginas dos eunucos? Como podia exalar masculinidade quando não a possuía?
Apenas Tuina, que havia chegado depois em seu passo lento, pode ver nos olhos dos dois jovens o que nem mesmo eles ainda queriam cogitar: o desejo. E isto a preocupava muito.
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Mais tarde, a sós em seu quarto com Tuina lhe despindo para sua ablução, Hat-Aru ainda não conseguia parar de pensar em Nimmur que estava postado do lado de fora de seus aposentos como guardião.
Distraidamente pergunta a Tuina: - O que significa aquela tatuagem na testa de Nimmur?
A escrava que já tinha um olhar preocupado e pensativo olhou sua amada senhora com pena e horror. Mas por não conseguir mentir para ela lhe disse: - Não há nenhuma tatuagem sobre a testa de Nimmur, senhora.
- Como não? É como um pássaro e se encontra bem no meio... Não! – A verdade havia lhe fulminado como um raio. – Não pode ser, Tuina. Você está brincando comigo. A lenda não era real, me diga que não. Ele não pode estar destinado a mim.
- Infelizmente, querida, eu acredito que sim.
- Mas se assim for, ele também deve ver a marca em minha testa.
- Provavelmente senhora.
- Chame Nimmur aqui, Tuina. Quero que ele me diga se vê a marca.
Enquanto Hat-Aru se cobria com um manto finíssimo que apenas lhe deixava ainda mais bela, Tuina ia até a porta dos aposentos chamar Nimmur. O rapaz entrou de cabeça e olhos baixos, mas com um porte altivo, como um guerreiro.
- Olhe para mim, escravo. – disse Hat-Aru. – E me diga o que vê em minha testa.
O rapaz confuso levantou os olhos para sua nova e bela ama. Um rosto lindo era o que ele via, e no meio de sua testa um pássaro pintado.
- Um pássaro, senhora. – abaixou os olhos novamente.
Choque era o que se via no olhar da garota. E Tuina, que a tudo assistia, já sabendo do que estava por vir, deixou correr lágrimas em seus olhos pelo amor impossível de sua senhora.
- Saiam os dois daqui agora mesmo. – gritou Hat-Aru. – Preciso ficar só.
Os escravos saíram enquanto Hat-Aru pensava. Precisava do consolo da Grande Ísis. Ela não podia amar um escravo, muito menos um eunuco. Como isto era possível? Só podia ser uma grande brincadeira de Seth, o deus maligno.
Nimmur saiu do quarto de Hat-Aru com Tuina e ao parar do lado de fora, a velha escrava o pegou pelo braço e o levou a ala dos servos. Chamou outro eunuco para guardar a porta de sua ama e continuou levanto o jovem pelo braço até seus próprios aposentos. Lá ela lhe contou a lenda, e porque somente ele via a marca na testa de Hat-Aru, assim como ela a via nele.
Enquanto Nimmur tentava entender seus sentimentos, a senhora Nefer-Hat-Aru pulava a janela de seu quarto e se dirigia ao pequeno templo dedicado à Ísis, dentro de seu palácio, próximo ao lago artificial criado para o banho dos senhores da casa.
Pedras brancas se erguiam majestosas no templo de linhas simples mas virtuosas. Lá dentro uma chama se mantinha acesa para iluminar a estátua da Deusa e Mãe Ísis. Hat-Aru aproximou-se e ajoelhada pediu a Deusa que a auxiliasse, iluminasse seu caminho e lhe mostrasse o que devia fazer. Assim, a primeira hora a encontrou, exausta de orar durante a noite, dormindo sobre os degraus que levavam a imagem.
Tuina passou a noite conversando com Nimmur, contando-lhe sobre sua Hat-Aru e ouvindo a história do rapaz. E descobriu algo que poderia chocar o seu Senhor Merkeset, e fazê-lo mandar açoitar o rapaz. Prometeu não contar a ninguém, nem mesmo a sua senhora, para evitar que ela tivesse esperanças no seu amor. Pediu a ele que não encorajasse sua senhora e que se mantivesse distante. Foi ao quarto de Hat-Aru para vê-la e não a encontrou.
Nimmur saiu da ala dos escravos e andando foi parar justamente em frente ao templo. Atraído por uma força maior que ele, adentrou as colunas e viu a jovem dormindo sobre os degraus. Era uma imagem etérea e linda. Sabia que devia ir embora, mas não conseguia se mexer. Pareceram horas, mas talvez fossem minutos. Hat-Aru foi acordada pelo olhar de Nimmur. E ao virar para ele e ver transbordar amor em seus olhos, soube o que devia fazer. Correu para seus braços e ofereceu seus lábios para um beijo. Nimmur a esperara toda vida. Abraçou-a e beijou-a. Fundidos neste abraço, senhora e escravo viveram sua paixão impossível. Hat-Aru teve instantes de surpresa ao descobrir o segredo de Nimmur: ele não era um eunuco.
Entre juras de amor e intimidades o casal passou ali a noite. E adormeceram cansados da paixão que os consumiu. Quando a terceira hora chegou, as sacerdotisas vieram ao templo e descobriram os amantes abraçados, dormindo no piso frio, cobertos apenas pelo manto fino de Hat-Aru. Seus gritos atraíram os guardas que levaram Nimmur imediatamente à presença de Merkeset. Enquanto as sacerdotisas carregavam Hat-Aru para seu quarto. Nem mesmo Tuina pode entrar no quarto de sua senhora para consolá-la.
Merkeset magoado e desolado culpava o rapaz pelo ocorrido. Descobrir que o rapaz não era eunuco e que se aproveitara de sua filha o deixara com raiva. Mandou amarrarem Nimmur com braços e pernas abertos no átrio e cortar o que já deveria ter sido cortado dele. Deixando-o então para morrer esvaindo-se em sangue. Não quis falar com sua filha e ordenou que a mantivessem trancada no quarto durante todo aquele dia, sem comida ou bebida. Quem agora iria querer sua princesa, sem o selo da sua virgindade, com a marca de ter se deitado com um escravo?
Em seu quarto Hat-Aru chorava copiosamente e chamava o nome de Nimmur. Ela mais sentiu do que ouviu o grito de seu amado. E percebeu a vida se esvaindo do corpo dele. Seus soluços sacudiam seu frágil corpo e cortaram o coração de Tuina, que não podia entrar em seus aposentos.
E assim passou-se um dia...
Quando permitiram Tuina entrar no quarto de sua ama, para lavá-la, alimentá-la e confortá-la, o dia nascia novamente, e a velha escrava abriu a porta apreensiva, pois parara de ouvir seus soluços há muito tempo. Para sua surpresa, Hat-Aru não se encontrava em lugar algum. Sobre a cama apenas um pequeno pássaro branco parecia fitá-la. Ao se mexer, Tuina espantou o pássaro que voou pela janela. Instintivamente, Tuina foi até a janela. Lá embaixo, guardas garantiam que sua ama não fugira por ali novamente; lá em cima, recortado contra as nuvens cinzas do dia que nascia nublado, o pássaro que voara, abria suas asas livres. Um outro pássaro, maior e escuro vindo não se sabe de onde, juntou-se ao pequeno pássaro e juntos sumiram no horizonte.
Não foi surpresa alguma para Tuina descobrir que o corpo do jovem Nimmur não estava mais amarrado no átrio. Apenas seu sangue permanecia manchando o chão claro. Por muitos anos, Merseket mandou procurar o escravo fugido e sua filha, mas sem sucesso algum.
Esta era mais uma lenda para Tuina contar à próxima senhora que fosse servir, pois Nefer-Hat-Aru e Nimmur com certeza estavam vivendo no outro mundo o seu único e verdadeiro amor.
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