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  1. A manhã gelada era a mesma da anterior.  Havia dias em que a massa de ar polar só fazia aumentar a sensação de frio. O sopro quente dos escapamentos dos carros erguia-se branco como névoa na escuridão, minutos antes do nascimento do sol. As pessoas passavam encolhidas em casacões, cachecóis e luvas em direção a seus empregos, ignorantes do dia que se avizinhava.

    Léia aproveitava mais alguns minutos entre os cobertores quentes antes de sentir o ar gelado que ocupava o quarto inteiro, a casa inteira. Os sentimentos que agitaram seu sono durante a noite sem deixá-la dormir eram semelhantes aos do ar glacial do ambiente ao seu redor.

    Primeiro a ira, a frustração, a raiva, a mágoa, e agora a indiferença fria, faziam da sua vida algo sem perspectiva, sem futuro. Por ela, mantinha-se sob as cobertas o dia inteiro, mas a rotina diária até que lhe fazia bem. Pelo menos não pensava nos seus problemas quando estava ocupada.

    Levantou-se e ligou a televisão por hábito. Assim ouvia algumas notícias antes de ir trabalhar, mesmo que inconscientemente. Escovava os dentes enquanto o apresentador do jornal matinal anunciava ainda mais frio, nevoeiros e até mesmo neve em algumas cidades mais frias. O termômetro estava batendo recordes a cada dia. Há muitos anos que não fazia tanto frio.

    Comeu com pressa depois de se arrumar e nem mesmo pensou em maquiagem ou perfume. Isto não fazia mais sentido em sua vida. Ninguém perceberia ou comentaria sobre sua boa ou má aparência. Pegou sua bolsa e as chaves do carro e desceu as escadas em direção à garagem. Passou por vizinhos contraídos de frio. Seu carro demorou a pegar e precisou esquentar-se antes de sair às ruas geladas onde os primeiros raios de sol brilhavam no orvalho gelado .

    Distraidamente foi refazendo o caminho diário sem prestar atenção aos gramados brancos pela geada e ao fino nevoeiro que brigava com os raios solares. Sua mente só saiu da fria indiferença em que estava quando o som de uma freada brusca anunciou um iminente desastre.

    Tudo o que lhe aconteceu nos últimos meses passou por sua mente em apenas dois segundos. Esperou o impacto enquanto freava também, mas ele não aconteceu. Com o carro parado, o tempo também parecia parado e mudo. Este instante foi de menos de um segundo, mas pareceu uma eternidade e então ouviu os gritos, as buzinas e o desespero no choro das pessoas.

    Desceu do carro e esqueceu de toda sua vida enquanto via ferragens de vários veículos, sangue e muitos gritos. Mas o que mais alarmava era que alguns envolvidos nem mesmo gemiam. O silêncio podia ser realmente assustador. As pessoas corriam, gritavam e gemiam. Alguma pessoas não envolvidas no acidente ligavam para o socorro ou para a polícia. O frio foi completamente esquecido.

    Léia se movimentava devagar, sem saber o que fazer para ajudar. Não conseguia contar, mas sabia que entre os veículos estava uma van escolar, um ônibus e muitos carros. Um choro baixinho entre as ferragens da van a atraiu instintivamente. Abaixou-se e viu presa entre os bancos uma garotinha. Devia ter apenas 7 ou 8 anos e estava molhada de sangue que Léia não sabia dizer se era dela ou de outras crianças da van. Deitada no asfalto frio, Léia esticou-se o máximo possível para poder dar a mão a menina e tentar acalmá-la. Ela soluçava de maneira sentida e agarrou a mão de Léia assim que a viu.

    Léia sentiu os dedinhos frios que escapavam pelos buracos feitos na luva que a menina usava e seu coração indiferente quebrou-se demonstrando o calor da solidariedade. Depois de várias perguntas, percebeu que a menina tinha apenas leves arranhões e que a maior parte do sangue era de outras crianças ou pessoas. A menina, que disse se chamar Brenda, parou de soluçar e passou a prestar atenção na voz calorosa de Léia que não parava nunca de falar, tentando acalmá-la.

    Assim ficaram por intermináveis minutos que foram quebrados pelos sons de sirenes dos bombeiros, polícias e ambulâncias que chegavam ao local para socorrer as vítimas. Logo um bombeiro chegou ao lado de Léia e ela pode lhe passar tudo o que Brenda estava sentindo e como ela estava. Enquanto ele fazia seu trabalho, Brenda não largou a mão de Léia nem um minuto. Este era seu porto seguro e sua salvação. Em meio a tragédia, o calor humano.

    Quando a ambulância se afastou levando a garotinha, Léia não era mais a mesma. O sol já espantara o nevoeiro. O frio cedia aos poucos lugar para o calor do dia. E o coração de Léia se abria a novas expectativas, cheio de emoção e pronto para novas experiências que espantassem as imagens da terrível calamidade que presenciara. Ainda tinha sangue nas mãos quando entrou no seu carro e um sorriso emocionado se abriu no seu rosto.

  2. 4 comentários:

    1. Lyani disse...

      Medéia,
      Que emocionante! Adorei seu texto. Está super bonito e cheio de sentimentos...
      Parabéns! :)
      Bjos,
      Ly

    2. Vivi disse...

      Catastrófes evidenciam a ação solidária. Aspecto muito bem capturado em seu texto. Muito bom!

    3. disse...

      Em meio a tragédia, há de se ter sempre esperança. Foi esta mensagem captada ao ler o seu texto. Parabéns, Medéia!

    4. Samuel disse...

      Eu sempre tento me esquivar de temas desse tipo, de ver coisas tristes, e por ai vai. E ta tudo tão ali na nossa cara, dor de muita gente, sofrimento de tantas outras, e a gente as vezes reclamando que a lâmpada queimou, ou que o chefe é um chato. É claro que tudo tem as suas razões e temos que reclamar tb, mas um tema como esses é fantástico pra gente parar e perceber tudo a nossa volta, e principalmente dar valor a tudo que temos, assim como Léia!

      Parabéns pelo texto! me deu um certo nó na garganta enquanto lia.

      Grande abraço!