Eu
tinha oito anos quando descobri o que era uma “mentira feia”. Meus pais sempre
falavam que eu não podia mentir, porque "era feio", mas eles mesmos
viviam mentindo um para o outro o tempo todo. Meu pai, por exemplo, dizia que
havia parado de fumar, e se escondia no quintal para acender um cigarro. Minha
mãe, por sua vez, dizia que estava bem, mas chorava escondida na cozinha de vez
em quando - e ainda culpava as cebolas. Um dia, questionei meu pai porque ele
podia mentir e eu não.
- Ora, é só uma mentirinha
boa, filho – justificou-se meu pai, naquela época.
- Como assim? –
perguntei.
- Eu estou mesmo tentando parar de fumar. Lembra
que eu fumava um cigarro atrás do outro? Então... agora eu só fumo, no máximo,
três por dia.
- Hmm... – murmurei
eu, ainda sem entender qual era a diferença entre aquela mentira e as "mentiras
feias" que eu era proibido de contar.
- Pois bem, se eu
continuar nesse ritmo, um dia vou parar de fumar. Daí não vai mais ser mentira.
Só falo que já parei para não preocupar a sua mãe. Ou seja, é por uma boa
causa.
- Então... mentira pra
não machucar os outros e que um dia vai virar verdade... pode?
Meu pai se arrumou na
poltrona, ciente de que precisava tomar muito cuidado com o que dizia para mim.
Às vezes, os adultos me chamavam de esperto como se fosse algo preocupante:
- Veja bem... você
ainda é muito novo! Não sabe diferenciar "mentira feia" de
"mentirinha boa". No seu caso, melhor não contar mentira nenhuma.
Mas eu tinha
entendido. Desde então fiquei observando e classificando mentiras quanto ao
tamanho e à natureza delas. Se eram mentiras que um dia se tornariam verdade e
evitassem que outros ficassem preocupados, sem problema. Contei várias
“mentirinhas boas” desde então, e, por isso, perdoáveis.
Por isso, não
considerei “mentira feia” quando disse para a minha mãe que tinha feito a lição
de casa, e a fiz correndo na escola com a ajuda do meu amigo, antes de começar
a aula. Também não vi problema algum quando escondi as marcas de socos e
pontapés que levei de um colega, só para não preocupar a minha mãe. Foi bom não
ter contado isso a ela porque teria ficado preocupada à toa. Mamãe nunca
entenderia a amizade entre meninos, provavelmente faria um escândalo na escola
e estragaria tudo! Eu mentia, mas tinha a consciência tranquila, pois eram
apenas mentirinhas boas. Foi assim até aquele dia, em que contei minha primeira
mentira grande.
Voltei para casa um
pouco mais tarde do que o costume. Abri o portão em silêncio e dei a volta na
casa. Fui até o quintal, onde há uma casinha de madeira que meu pai construiu
para mim. Era uma construção rústica, mas que eu achava demais: um telhadinho e
três aberturas na parede: duas janelas nas laterais e uma porta na frente.
Cabia com folga quatro crianças ou uma criança e um adulto sentado. Talvez coubessem dois adultos sentados, não sei. Minha mãe nunca ia lá.
Era o meu quartel
general durante as férias, e ficava lá com meus amigos lendo gibis e brincando.
Durante o período de aulas, a casinha ficava às moscas, por isso achei que lá
seria o esconderijo perfeito para Flocos, um filhote de cachorro malhadinho que
eu trouxe da rua, dentro de uma caixa de papelão.
Quem inventou esse nome foi Luísa, uma
das minhas colegas com quem eu voltava para casa todos os dias. Ela adora
sorvete de flocos e achou que aquele filhote parecia um sorvete de flocos:
branco, com manchinhas escuras. Depois da escola, voltávamos para casa Luísa,
Carlos, Juca e eu, mas íamos nos separando ao longo do caminho, cada um em
direção à sua própria casa. Quando sobrou apenas eu e Luísa, vimos uma caixa de
papelão jogada no meio da rua. A caixa tremia e nos aproximamos para ver:
dentro dela, um filhotinho um pouco quieto, assustado. Luísa quis pegar o
cachorrinho, mas como morava em apartamento, não podia.
Meus pais não queriam
que eu tivesse um animal de estimação, mas pensei que, aos poucos, eu os
convenceria. Cuidaria de Flocos em segredo até aquele dia chegar. Seria minha
primeira grande mentira, mas ainda assim, uma mentira boa e, quem sabe,
perdoável, pensava eu. Ainda não
sabia se as condições para uma mentira não ser feia eram ligadas por
"e" ou "ou".
Depois de acomodar
Flocos na casinha, como não havia uma porta para fechar, deixei a caixa de
papelão bloqueando a entrada, para que ele não fugisse. Olhei pela janelinha e
vi que ele ficou deitado, encolhido. Devia estar morrendo de fome.
Voltei até o portão da
casa e entrei novamente, fazendo muito barulho. Joguei meu material no chão da
sala e corri para a cozinha, como sempre fazia. Não queria que a minha mãe
desconfiasse de nada.
Ela estava terminando
de preparar o jantar.
- Chegou tarde, hein?
– comentou minha mãe, sem tirar os olhos do fogão.
- É...
Ela desligou o fogo,
limpou a mão no avental e me encarou:
- O que é que você
está aprontando? – perguntou ela, me sondando.
Não sabia se ela tinha me ouvido correr
para a casinha de madeira no quintal ou se estava perguntando sem motivos.
Engoli em seco, desviei o olhar e murmurei:
- Nada... tava só
conversando com meus amigos e perdi a hora...
Ela continuou me
encarando, mas logo desistiu, passou a mão nos meus cabelos e disse:
- Seu pai já vai
chegar. Vai lá tomar banho.
Corri escada acima e
tomei banho. Meu pai chegou e fomos todos jantar. Minha mãe havia feito frango
empanado, meu prato preferido. Comi menos do que de costume para sobrar bastante.
Minha mãe até estranhou.
- Não estou com muita
fome – menti.
Depois do jantar, falei
que precisava fazer a lição e fui para o meu quarto. Esperei os dois irem para
a sala assistir à TV. Voltei à cozinha, sem fazer barulho.
Peguei alguns jornais
velhos e os coloquei debaixo do braço. Peguei também dois potes de margarina
vazios, que a minha mãe usava para guardar restos de alimento na geladeira.
Coloquei um pouco de leite em um dos potes e o frango no outro e corri para a
casinha de madeira no quintal. Flocos estava lá, ainda encolhido no cantinho.
Forrei todo o chão com
jornal, e coloquei a comida. Flocos levantou correndo, bebeu o leite e comeu o
frango, que eu piquei em pedacinhos menores. Ele parecia contente e lambeu
minhas mãos e o meu rosto.
Procurei no quintal
algum pano. Acomodei Flocos num cantinho da casinha, e o cobri com o cobertor.
Flocos queria brincar, mas eu precisava voltar para o meu quarto antes que meus
pais desconfiassem. Deixei com ele uma bolinha verde, feito com uma meia furada
minha. Quando me afastei, vi que Flocos mordia a meia e corria de um lado para
o outro.
Foi difícil
dormir naquela noite. Tinha medo que Flocos começasse a latir, mas ele ficou
quietinho. Talvez estivesse cansado demais. Na manhã seguinte, acordei mais
cedo do que o normal. Meus pais se entreolharam desconfiados, e saíram juntos
para trabalhar. Meu pai trabalhava longe, mas a minha mãe trabalhava em um
escritório ali perto e voltaria no horário do almoço. Tive a manhã inteira para
brincar com Flocos sem me preocupar.
Flocos estava muito
mais agitado do que no dia anterior, correu pelo quintal e já parecia ter se
acostumado totalmente comigo. Antes de minha mãe voltar para almoçar, peguei
mais um pouco de leite e frango e dei para Flocos. Enquanto o filhote comia e
bebia, bloqueei a entrada da casinha com a caixa de papelão e fiquei observando
pela janela o Flocos se alimentar. Depois de comer, ele olhou para os lados e
latiu um pouco, mas logo se cansou, deitou em cima dos panos e dormiu.
Um pouco antes do meio
dia, voltei correndo para dentro de casa, coloquei o uniforme da escola e fingi
que estava vendo televisão. Minha mãe chegou, esquentou o almoço e comemos
juntos. Depois, ela foi comigo até a escola. Acho que ela sabia que eu estava
escondendo alguma coisa e fez perguntas esquisitas. Eu usei a tática do meu pai
e mudava de assunto sempre que a conversa começava a ficar perigosa.
Nem prestei atenção às
aulas daquele dia, ficava apenas pensando em Flocos e o quanto poderíamos
brincar nos próximos dias. Fiquei também bolando planos para que meus pais
aceitassem o cachorro em casa. Primeiro falaria com o meu pai e ele, de certo,
me ajudaria a convencer a mamãe. Estava cheio de sonhos e a tarde demorou a
passar.
Voltei para casa
correndo. Quando estávamos a sós, Luísa me perguntou do Flocos e eu disse que,
assim que meus pais soubessem, eu a chamaria em casa. Por enquanto, seria o
nosso segredo.
Cheguei em casa e
notei que o portão estava entreaberto. Achei estranho, senti um frio na barriga
sem saber exatamente por quê. Sem me preocupar em fazer barulho, corri para o
quintal, e vi que a caixa de papelão havia sumido e não bloqueava mais a
entrada da casinha de madeira. Dentro da casinha, apenas jornal espalhado no
chão e potes de margarina vazios. Em um canto, os panos e a bolinha verde feita
de meia.
Atordoado, entrei em
casa. Minha mãe preparava o jantar e não tirava os olhos das panelas.
- Já chegou? Como
foi na escola.
- Legal... – respondi,
vagamente.
- Aconteceu alguma
coisa? – perguntou minha mãe, sem desviar o olhar.
- Não... nada...
Mãe... – eu não sabia exatamente o que perguntar sem me denunciar.
- O que foi, filho?
- Quando cheguei... o
portão... estava um pouco aberto... – falei, por fim.
Ela estremeceu de
leve, mas continuou concentrada no que fazia.
- Vai lá se lavar, seu
pai já está chegando - disse ela, por fim. Mamãe também sabia usar a tática do
meu pai.
Fui tomar banho e
segui exatamente a rotina. Quando eles foram assistir à televisão, procurei pelo
quintal todo para ver se encontrava Flocos, mas nada. Fui me deitar mais cedo,
confuso e muito triste.
Lá pelas tantas, minha mãe apareceu no
quarto. Eu fingi que estava dormindo. Ela afagou a minha cabeça e parecia
triste também.
No dia seguinte,
acordei cedo e corri pela vizinhança, procurando Flocos, mas achei apenas a
caixa de papelão, jogada em uma rua próxima. Ninguém viu cachorro nenhum.
Durante o almoço, minha mãe
comentou casualmente que uma senhora da rua de trás estava com um cachorrinho
malhado nas mãos. Ela disse que o encontrara ali perto, numa caixa de papelão,
e que parecia perdido.
Não falei nada.
- Tenho certeza de que
ela vai cuidar muito bem do cachorrinho – comentou minha mãe, sem olhar para
mim em nenhum momento.
Eu sabia que ela
estava mentindo e que não havia senhora nenhuma. Sabia que, provavelmente, ela
chegara do trabalho, colocara o Flocos na caixa de papelão e o abandonara ali
onde eu encontrei a caixa vazia.
Sabia tudo isso, mas fiquei quieto. Fingi acreditar.
Foi naquele dia que eu
compreendi o que era uma “mentira feia”.
Que texto ótimo. Bom de ler. Vê-se a sua entrega em cada linha, Debs. Ah, os pais! Ensinam a não mentir, mas se esquecem de dizer a verdade. Então as mentirinhas sorrateiras sedimentam a dissimulação na rotina e imprimem no gene familiar a hipocrisia do fingir acreditar. Isso é doer na matadura, né, não? Ótimo o fechamento do texto ao estilo tapa com luvas de pelica. Beijocas!