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  1. Arrancou o celular vermelho da mão do rapaz que ouvia um delicioso som funkeiro e arremessou o aparelho pela janela do ônibus. Não aguentava mais. Por que é que esses caras não usam fone de ouvido? Pelamordedeus! O ônibus inteiro precisa ouvir também?
    O pior é que ninguém fazia nada. Tinha certeza de que todos estavam odiando aquele barulho irritante tanto quanto ele, mas ninguém fazia nada por comodismo, por “não querer arrumar problemas”, era sempre o mesmo papo, ele sabia disso, podia ler na caras de cada um.
    Não ficou satisfeito com o arremesso de celular. Na verdade, reparou que seu ato causara um problema extra, que lhe passou a causar novos calafrios: lixo. Afinal, ele tinha agido exatamente como um gordo barbudo no ônibus... que agora, por sua vez, via jogar a respectiva latinha de cerveja pela janela! Sorte que era agora o ponto onde descia.
    A toda velocidade, desceu do veículo e procurou a latinha de cerveja tristemente abandonada pelo barba-negra. Assim que deu por ela, caída na rua, perto da guia da calçada, sorriu vitorioso, agarrou a lata – ainda com um restinho do líquido original – e, antes que o ônibus partisse, mandou ver com outro belo arremesso: bem na direção do antigo dono do objeto de metal, tranquilo, sentadinho lá no alto, no seu lugarzinho contente dentro do ônibus.

    Missão cumprida. Faltava decidir o que fazer com o celular arrebentado em três partes na calçada. Agora devidamente silencioso – graças a Deus! Também se fazia necessário correr, porque tanto o ex-dono do aparelho antes barulhento, assim como o amante da cevada maltada não pareciam muito felizes.
    Depois de agarrar os três pedaços do celular vermelho no chão, saiu então em disparada. Afinal, como Batman, ele deveria desaparecer sem deixar vestígios, logo após a execução de seu trabalho. Pois ele era o vigilante que a cidade precisava.
    Durante sua corrida como jato pelas ruas, acabou encontrando um cavalete. Não só um, mas dois, três, bem diante de si na calçada e rotatória. Políticos. Fazendo de sua cidade uma imundície. Poluição visual. Irritando com sua foto e slogan idiotas.
    Dizem que servem à democracia, mas como votar em alguém só porque você viu a foto e duas palavrinhas do indivíduo pode ser democracia? Fala sério. E quando chegar no dia da eleição, com certeza vão repetir o mesmo mar de papel de cada dois anos, com a mesma foto e palavrinhas genéricas.
    Não teve dúvidas: aproveitando o embalo da velocidade, mandou ver com um chutão frontal muito bem dado no primeiro cavalete. Bem na fuça imaginária retratada no impresso expositivo! Como numa corrida de obstáculos, partiu logo em seguida para o outro cavalete, desta vez girando o corpo e mandando ver no segundo pontapé. Para completar, encarnou Bruce Lee, deu um olímpico salto acrobático, gritou HUUUUAAAAAAIIIIIAAAAAAAÁ!!!!, voou para o outro lada da rua e foi com tudo para cima da terceira propaganda irritante, sobre a rotatória, espatifando o objeto em cinco partes.
    Que alívio. Que sensação inebriante. Que sensação de dever cumprido. Mas... merda. Ele havia esquecido um detalhe. Aliás, três. Mais que isso, quatro. Seis, na verdade. Durante essas manobras cinematográficas, o celular vermelho tripartido do funkeiro tinha ido pelos ares, escapando de seu bolso. E os três cavaletes agora jaziam no chão, agora destroçados por seus corajosos golpes de artes marciais, mas sim, seguiam no chão, mantendo a rua horrível.



    Enquanto pensava desesperado em alguma solução, deu-se conta de um cheiro horrível de nicotina. Uma fumante! Uma motorista dentro de seu Fiat, boquiaberta, parecia admirada das façanhas do herói. Sim, admire-se, cidadã. Mas envergonhe-se por fazer do ar ao seu redor impuro e tóxico dessa maneira. Nem adianta fazer charminho, com esse bracinho pra fora, com a delicada mãozinha segurando o rolinho branco. Nem essa boquinha aberta fazendo “oh!” convence o guerreiro da esperança.
    Resolutamente, ele vai até ela e lhe pede fogo. Ela pega o isqueiro, esperando que ele estendesse à motorista o respectivo cigarro para acender. Como um cavalheiro à moda antiga, ele pega a mãozinha dela com o cigarro, retira-o delicadamente dela, e beija as costas dessa mão, agora desarmada – e a mocinha estupefata. Em seguida, o aspirante a Bruce Lee arranca o isqueiro da outra mão da senhorita, sem esquecer de pedir antes “com licença”. E, bem pertinho da moça, antes de se despedir, encontra dentro do carro, encaixado na parte interna da porta, o maço de onde o rolinho branco tinha se originado. Sem hesitar, pega o pacotinho e o amasseta com a outra mão, agora livre (deixou cair o cigarro no chão por um bem maior).
    O herói mal consegue se desvencilhar dos safanões que a moça lhe aplicava. E ainda por cima ela gritava, com uma voz extremamente aguda e irritante. Que inconveniente!
    Pelo menos, agora enfim possuía o instrumento adequado. Com o isqueiro, podia queimar as ruínas de cavaletes que jaziam desabados pelo chão. E foi o que fez, ou tentou fazer, na verdade. O fogo do isqueiro era muito fraco para tamanhas ruínas acumuladas. E não teria tempo suficiente para a operação, pois a senhorita, por alguma razão, extremamente enraivecida, estava se aproximando. Não ia dar tempo de limpar o estrago. Era hora de Batman desaparecer novamente.



    Com o isqueiro e os fragmentos do celular vermelho na mão, o guerreiro partiu novamente, a toda velocidade. Depois de cinco quadras, praticamente sem fôlego, sentiu outra fragrância horripilante de morte, esta muito mais explícita e literal. A cena também era repulsiva: cadáveres em pedaços eram transportados de um caminhão e expostos em ganchos dentro de uma loja. Pessoas escolhiam e compravam. Coração, fígado, peito, pernas.
    Assombrado, estacou em frente do lugar de pesadelo. Quase sem forças, mas ainda sentia o dever da justiça. Como estrelas-ninja, arremessou um de seus fragmentos de celular no homem de branco e de plástico, que transportava mais um grande pedaço cadavérico e congelado do caminhão; arremessou no balconista, que negociava um dos pedaços de corpos que jaziam armazenados na casa de terrores; e, por último, na senhora que pagava para adquirir o pedaço que já foi de um ser vivo, que sentiu solidão, tristeza e sofreu, quem sabe com esperanças que nunca se concretizaram.
    Os golpes não foram certeiros o suficiente. Sequer teve coragem de mirar corretamente na senhora consumidora de corpos: o cavalheirismo do vingador não o permitia.
    Em um instante, viu-se cercado pelos três raivosos, mancomunados com o mesmo crime hediondo. Provavelmente ele teria o mesmo destino que os agora pendurados no caminhão e na casa de corpos, fatiados. Como se não bastasse, a senhorita da chaminé de nicotina também chegava, e com reforços: o gordo barba-negra da lata de cerveja; o rapaz que gosta de compartilhar sua música para os colegas de transporte público; e até mesmo três sujeitos de paletó, que tinham suas faces espalhadas pela cidade.Parece que sua única arma restante, o isqueiro que segurava, não seria defesa suficiente.



    Abriu os olhos. Uma adorável e repetitiva ladainha em alto volume saía do celular vermelho de um animado e inocente rapaz no ônibus onde estava, sentado num banco do outro lado do corredor.

  2. 7 comentários:

    1. Vivi disse...

      Que imaginação do caramba! Super legal o texto. Achei-o trabalhado de forma bem engenhosa, pois, desde o início, não se sabe aonde a mentira se encaixará no texto. E eis que ela aparece como uma espécie de lembrancinha dentro de uma atraente caixinha de surpresas. Gostei da linguagem moderna e imagética da escrita. Torna fácil o embarque do leitor nas asas da imaginação. Gostei da abordagem dada ao tema. Saiu do óbvio, evidenciando a criação imaginária de uma mentira ficcional com o fim de abstrair-se de uma realidade indesejada. Ficou ótimo!