Rss Feed
  1. Esquecidos

    11/08/2008

    Por: Cris Costa

    - Tem certeza de que está pronta! Você quer mesmo ir?– perguntou-me Gracie, antes que eu entrasse no táxi.
    - Não sei, mas sinto que preciso tentar. – respondi e fechei rapidamente a porta do carro antes que mudasse de idéia.
    - Guilhermina, me ligue assim que chegar. – afirmou Gracie
    - Obrigada! – disse quando o táxi já estava em movimento.
    A viagem foi tranquila levando-se em conta que era uma sexta-feira. Era soberbo observar as pessoas, algumas rindo, outras falando ao celular e correndo para não se atrasarem; aquela loucura normal do trânsito com carros buzinado e motoboys dirigindo perigosamente. Tudo parecia lindo e eu realmente me sentia bem.
    Gracie já havia pago o táxi, então, minha única preocupação era chegar em casa o mais rápido possível. Enquanto fechava a porta do táxi, procurava em minha bolsa as chaves de casa. Impossível descrever a emoção que tomou meu coração quando comecei a subir os degraus que levavam até a porta de entrada. Foi incrivelmente difícil acertar a chave na fechadura, minhas mãos estavam frias e úmidas, meu corpo todo tremia. No fundo já esperava que meu corpo reagisse desta forma, afinal, já haviam se passado seis meses.
    Fui abrindo a porta bem lentamente, contudo já podia ouvir as vozes e deliciosas gargalhadas de Cruz e Maya que vinham do quarto. Imediatamente eles vieram correndo ao meu encontro:
    - Mamãe, estávamos esperando por você! Sentimos tanto a sua falta! – falaram em uníssono, me abraçando e beijando.
    - Também senti falta de vocês. - respondi com os olhos marejados. - Onde está o papai? – perguntei achando que ele ainda estava no escritório.
    - Gui! Que bom que voltou para casa! Eu e as crianças já estávamos achando que você não nos amava mais – disse uma voz doce, quase que sussurrando atrás de mim.
    - Téo! – gritei, com o coração quase saindo pela boca, abraçando-o com todas as minhas forças.
    Téo era meu doce refúgio, meu alicerce. Amei Téo desde o fatídico dia em que nos conhecemos na faculdade. Era uma terça-feira e chovia muito. Tinha um trabalho para apresentar e muito preocupada me distraí, escorreguei na escada da entrada. Na queda colidi em algo . Quando finalmente tomei coragem de abrir meus olhos, ouvindo muitas gargalhadas, visualizei um rosto lindo, rindo e me observando. “Nossa! Hoje é meu dia de sorte! Está chovendo mulher aos meus pés. Sou Téo, você está bem???” Há males que vem para bem. O que era para ser trágico foi espetacular. Téo nunca mais me abandonou um só dia. Nos casamos um ano após a minha formatura em Psicologia. Ele havia se formado em Arquitetura dois anos antes.
    Sentamos todos juntos nos sofá, as crianças falando, falando, tentando me contar tudo o que havia acontecido durante o tempo que estive fora. As horas passaram rapidamente, conversamos, brincamos e finalmente as crianças dormiram. Depois de tanto tempo, pude ficar sozinha com Téo. Como era bom tê-lo só para mim, me aconchegar em seus braços e receber seus doces beijos. Conversamos durante horas, até que ele ficou sério, triste. Nem parecia mais o mesmo Téo.
    - Gui, não sei por quanto tempo poderemos ficar. – sussurrou Téo
    - Porque??? Mas agora eu voltei! Estou bem e quero ficar com vocês, somente com vocês. – respondi, tendo pela primeira vez em meses, certeza do que queria.
    - Ok, você venceu, eu te amo! Esqueça o que falei – disse ele, beijando-me em seguida.
    Após meses, tive minha primeira noite tranquila, dormi bem, nada de pesadelos me perturbando. Quando acordei a casa estava silenciosa. Já se passavam das nove horas da manhã. Téo, com certeza, já tinha levado as crianças ao colégio. Não havia louças na pia, roupas sujas na máquina de lavar, nem brinquedos espalhados pela casa toda. Fiquei orgulhosa, pois eles haviam finalmente se organizado nas tarefas domésticas. Não que eu não gostasse de cuidar da minha família, mas ultimamente me sentia sobrecarregada com todas as responsabilidades da casa. Minhas discussões com Téo se resumiam em sua constante ausência. Desde que se tornara sócio de um grande escritório de Arquitetura, ele não tinha muito tempo livre para a família. Financeiramente nossa vida tinha melhorado 100%, em contrapartida, era uma batalha conseguir um único final de semana de folga. Agora tinha certeza de que tudo estava diferente, minha ausência tinha feito bem a eles.
    A tarde foi caindo e uma fina chuva começou. Não tinha conseguido falar com Téo o dia todo, precisava saber se ele conseguiria pegar as crianças no colégio. Nem o celular ele atendia. Odiava aquela voz de mulher: “Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens e estará sujeita a cobrança após o sinal, Bip”. Eu precisava falar com meu marido, somente isso. Aliás, nem a secretária da empresa atendia o telefone. Assim que Téo chegasse, contaria a ele que Eva não estava atendendo o telefone, “quantas ligações de clientes importantes não foram perdidas”.
    Peguei as chaves do meu carro e saí para buscar as crianças no colégio. Se Téo estivesse lá também, poderíamos sair para jantar. As primeiras gotas da chuva ao se encontrarem com o pára-brisa confirmaram a minha desconfiança. Téo não havia usado meu carro desde quando eu parti, pois o vidro estava muito empoeirado. Gostaria de não ter que sair de casa, a chuva me incomodava.
    Estranhei ao chegar no colégio, tudo estava tão calmo. Eu não estava tão adiantada, somente vinte minutos antes do horário da saída das crianças. Em dia de chuva, as mães se tornavam seres descontrolados, fazendo de tudo para que seus “filhotinhos” não se molhassem. Era incomum todo aquele vazio. Passados alguns minutos, sem que nada acontecesse, desci e toquei o interfone da escola. As gotas da chuva ardiam em minha pele. Depois que me identifiquei o zelador veio correndo me atender.
    - Senhora Feres, deve haver algum engano! Seus filhos não estão aqui. – disse Seu João, com um olhar muito preocupado.
    - Seu João, o Téo sempre deixa Cruz e Maya aqui antes de ir para o trabalho. Ele já veio buscá-los?? – respondi, não entendendo nada.
    - Não! Creio que seja melhor a Sra. entrar, a chuva está engrossando – falou ele com calma, mas ainda muito preocupado. – Vou ligar para a Sra. Rodrigues, ela poderá conversar melhor com a Senhora. – disse enquanto tentava me fazer entrar.
    - As crianças foram viajar?? Algum passeio do colégio?? – perguntei, ainda mais confusa.
    Não sei se ele respondeu alguma coisa, mas, de repente minha cabeça começou a girar e lembrei-me das palavras de Téo “não sei por quanto tempo poderemos ficar”. Saí correndo, entrei no carro e dirigi como uma louca, com aquela chuva não sei quantas regras de trânsito desrespeitei até chegar em casa.
    Tanto o quarto de Cruz quanto o de Maya estavam vazios, nada de roupas nem brinquedos. No armário não havia uma única peça de roupa de Téo. Tentei ligar para Gracie, mas o telefone estava mudo. Como a chuva estava bem forte, a rua estava vazia. Comecei a correr e gritar pedindo ajuda, Téo tinha partido, fugiu levando meus filhos com ele. Porque ele fez isso??? Foi tudo muito rápido, um estrondo e barulho de metal se contorcendo.
    Luzes, sirenes, passos, vozes desesperadas, barulho de metal sendo cortado. Algo estava sobre mim, não sentia muito meu corpo. Aos poucos identifiquei que era Téo. “Gui, tudo vai dar certo, você vai ficar bem!”
    Um homem de uniforme cinza me tirou do interior do carro e vibrava “ela está viva, ela está viva”. Do que ele estava falando, era óbvio que eu estava viva.
    Cruz e Maya falaram algo como “ele prometeu mamãe, já estava tudo combinado”. Ouvia minha própria voz: “Vou tentar convencê-lo, mas papai disse que está muito cansado e preferia ficar em casa”. “Téo, você não tem mais tempo para nós. É só a droga de um final de semana na fazenda, será que é tão difícil para você entender que eu e as crianças sentimos a sua falta e queremos nos divertir com você!”. Eu ouvia as vozes, mas não conseguia vê-los: onde estava Téo, Cruz e Maya???. Novamente ouvi a doce voz de Téo “Gui, se é tão importante para você viajar neste fim de semana com as crianças, nós vamos. Ok! Você venceu, eu te amo”. Tudo escureceu novamente e a voz de Téo acompanhada das gargalhadas de Cruz e Maya, vieram a minha mente acompanhada da voz de Johnny Rivers: Do you wanna dance and hold my hand ?Tell me that I’m your man/Baby, do you wanna dance ? Baby... do you wanna dance? Do you do you do you do you wanna dance?". Eu amava aquela música e Téo sempre cantava para mim. Ele estava sorrindo e cantando quando a forte luz veio ao nosso encontro. Sons de freios, pneus, fumaça, a pista escorregadia por causa da chuva e tudo se apagou.
    Quando abri os olhos, Gracie estava me abraçando, sentada no meio da rua sob a forte chuva. Eu estava chorando copiosamente.
    - Gracie, as crianças não estão na escola.
    - Guilhermina, hoje é sábado, não tem aula no colégio. – respondeu Gracie
    - Onde está Téo, Cruz e Maya?? – gritei, desesperada. – Téo fugiu e levou as crianças!!
    - Acalme-se e respire. Téo não fugiu com as crianças, lembre do acidente. – Gracie falou com um tom de voz calmo demais para a situação presente.
    - Que acidente??? Você está louca Gracie? Onde eles estão???
    - Eles estão mortos, Guilhermina. Lembre-se, fique calma! - falou Gracie com mais calma.
    - Impossível....eles estavam em casa ontem quando eu cheguei. Estavam eufóricos com o meu retorno. Você me ouviu Gracie?? Eles estavam em casa e f-e-l-i-z-e-s! – disse enquanto tentava me desvencilhar dos braços dela
    - Guilhermina, fique calma! Tente se concentrar e lembrar dos fatos....eles morreram há seis meses no acidente quando vocês voltavam da fazenda – falou Gracie secamente, segurando meus braços com mais força.
    A lembrança das palavras de Téo: “Gui, se é tão importante para você viajar neste fim de semana com as crianças, nós vamos. Ok! Você venceu, eu te amo”. A recordação foi como se chicotadas partissem meu coração.
    - Foi culpa minha, Gracie. Téo não queria ir, mas, eu insisti tanto que ele acabou cedendo – falei entre lágrimas.
    - Não foi culpa sua! A chuva estava muito forte, um outro veiculo em alta velocidade se perdeu e ocasionou o acidente. Muitas vidas se perderam naquele dia. Não foi culpa sua!
    - Foi tudo culpa minha! Culpa minha! Culpa Minha! Ele não queria ir!– gritei começando a me debater. – Eu os matei, sou uma assassina! Porque ainda estou aqui, chame a polícia Gracie, me prenda, sou assassina!
    Eu precisava de Téo, Cruz e Maya, tanto quanto precisava de ar. Eu os vi, beijei e abracei. Agora Gracie dizia que ele estavam mortos. Porque??? Como??? Mais veículos pararam a nossa volta. Pessoas e mais pessoas, mas nenhuma delas era Téo.
    - Por minha cuuullllpaaaa! Me deixemmm...– falei já muito fraca; indefesa pois três pessoas me seguravam; sonolenta; enquanto uma moça de branco injetava algo em mim.
    Quando finalmente acordei, me recordava muito pouco do meu pesadelo. Estava um pouco ansiosa pois desta vez parecia ter sido mais real. Meu corpo doía e tinha alguns hematomas. Conversei com a Dra. Gracie e ela me certificou de que tudo vai ficar bem, que talvez eu tenha que ficar mais um tempinho aqui na Clínica, até que me recorde do passado. Achei mamãe e papai muito abatidos, com enormes olheiras, mas eles afirmaram que estavam bem. Me perguntaram sobre o pesadelo e do que me lembrava. Respondi a verdade: “lembro-me da chuva”. Mamãe começou a chorar. Papai a abraçou, me beijou e se despediu: “Até logo, voltamos amanhã”. Neste mesmo instante começou a chover.
    Observando os pingos colidirem com a janela, tenho certeza que um dia irei me lembrar do passado. Não sei porque estou nesta clínica, nem porque dias chuvosos são tão tristes para mim. Um dia quem sabe, a Dra. Gracie me deixe sair da clínica em busca de meu passado, mas, por enquanto, não sinto que preciso lembrar...me sinto bem agora..."tudo a seu tempo"...

  2. 6 comentários:

    1. Anônimo disse...

      Nossa que triste =´(
      Você escreve muito bem Cris, pq eu entrei na história e fiquei emocionada com os sentimentos e personagens.
      Parabéns!
      bjos

    2. Vivi disse...

      Cris,

      Senti uma vontade de chorar! Envolvi-me completamente. Querendo saber o desfecho de tudo.

      Seu melhor texto. Estou muito bem impressionada!

      Parabéns!

      Beijos

      Beijos

    3. Concordo com as meninas Cris.
      Lindo texto, muito triste e muito bom!
      Parabéns

    4. disse...

      Cris!
      Escondendo o jogo, não é?
      Eu fiquei muito comovida com seu texto.
      A narrativa prende o leitor,arte difícil de dominar e você encontrou o tom certo. O desfecho da história também ficou excelente.
      Parabéns!

    5. Anônimo disse...

      Cris,
      Na minha opinião esse é seu melhor texto...Fantástico!
      Está bem escrito, com uma sensibilidade incrível...creio que vc se superou.
      Parabéns!

    6. Cris, meniiiiinaaaaaaaaaa,

      surpreendente seu texto, vc escreveu tão bem que me levou as lagrimas....

      Parabéns....