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  1. Indefinições

    28/10/2008

    Por: Giovanni Nobile

    Há vaga...
    Vagas lembranças,
    Esquecimento.
    Cimentado peito,
    Que já não vive as dores passadas...


    - Talvez seja bom sair da rotina. Às vezes, pode fazer bem. Sinto saudades dos nossos discos arranhando na vitrola. Dos cheiros dos livros ajeitados, meio que sem ordem, naquela estante já capenga, calçada por um Iracema todo surrado. Vontade de uma cerveja, agora, como nos velhos tempos, ouvindo Bob, na vitrola. Lembra?
    - Lembro, claro que lembro.
    - De mim, dos livros ou do Bob?
    - A capa do livro era amarela, não era? Ah! Não sei. Acho que vivo sonhando. Sonho acordado, de vez em quando. É que sou meio desligado. Você sabe. Quer matar a curiosidade?
    - Hã?
    - Nada não. Você não está prestando atenção, não é?
    - Estou, sim. É que vivo sonhando. Você me conhece. Lembra daquele sonho que a gente sonhou junto?
    - qual?
    - Você se recorda! Tinha uma voz feminina...
    - Ah, não me lembro muito bem, não. Tenho vagas lembranças, somente. O tempo vai passando e parece que nebulosidades impedem que alguns raios de sol cheguem. É como naqueles desenhos animados. Sabe quando chove só n’a gente?

    ...Há vaga
    Neste peito já surrado
    Na lágrima seca no rosto
    No vão que existe no vazio do que um dia foi abraço
    Há vaga
    E vagas lembranças, de dores já passadas...


    - Eu fico de cara. Tem momentos em que observo a lua sozinha. Somos sós: eu e a lua. Tenho leves impressões de que estamos a sós. Só nós dois. E pesadas pressões de que o mundo todo não dá a mínima. Estamos sós. Parece que todos se esquecem de parar um pouco, não é?
    - Tenho vagas lembranças. Uns flashes, somente. Estamos a sós.
    - Eu, não. Lembro de cada detalhezinho. Das curvas gastas dos entalhes dos móveis da sala de estar, dos azulejos trabalhados, já manchados, mas ainda belos. Ela me odeia?
    - Quê?
    - Eu sei. Pode falar.
    - Bom, na verdade acho que todo mundo sabe, mas não vem ao caso, né?
    - É. Eu toquei no assunto por curiosidade. Na verdade, só pra confirmar, mesmo.
    - (...)
    - É tudo tão estranho.
    - É verdade, eu também acho.
    - Na verdade eu já não sei o que mais eu acho, mas já achei algo por um tempo. Eu acho. Mas não sei nada mais. Porque os meninos nunca assumem?
    - Hã?!
    - Eu era apaixonada por um menino na quinta serie! Gostei dele ate a sétima, oitava. Guardei até um papel de bala que ele me deu. Era doce. De mel, sabe? Era como o favo que a abelha fabrica no tronco da Andiroba.
    - Tinha, na doçura, o veneno?
    - Quê?
    - Iracema. Aquele que calça o pé da estante manca. Ah! Nada... continua!
    - Esqueci de onde parei. Só sei que daria uns capítulos de livro essa história. É Engraçado. Não sou velha, mas vejo umas coisas do meu passado e acho graça. Fico confusa. Você sente isso?
    - Tudo passa sobre a terra. Mas tenho pouca memória de tudo isso. Até já não sei mais se tudo isso um dia foi tudo ou se sempre foi nada. Acredita que não tenho nenhuma foto desta época?
    - Dessa minha atual vida adulta quase não tenho foto nenhuma, também. Uma madrinha minha me disse que as belas imagens a gente guarda é no coração...
    - É. O resto são fotos de praia, do natal e de aniversários de quando eu era criança e algumas outras fotos três por quatro que ficaram jogadas dentro de algumas agendas velhas.
    - ...Mas eu tenho foto sua em casa. Olhei num dia desses. Uma foto sua, me fotografando. Você não lembra desse dia?
    - Não lembro ao certo, mas lembro que você me falou algo.
    - Bom, devo ter falado mesmo.
    - Não, acho que não. Eu devo ter sonhado. Vivo sonhando acordado, você sabe disso.
    - Ué, mas dez minutinhos sonhando de verdade não faz mal pra ninguém. Ela já teve ciúmes?
    - Não, não. Mas é que deixá-la por baixo, assim, pegou mal, não é?

    ...E Sempre depois de um tempo acontece algo que surpreende, mas depende de como você encara as coisas.
    Têm coisas boas, coisas ruins...


    - Ah! É normal, né? Faz parte da vida. Fica tranqüila, não é nada grave. A gente tá sempre mais ou menos, na verdade. E, às vezes, fica meio por baixo, mesmo...
    - É. Mas há o que não merece ficar por baixo...
    - (...)
    - No fim, acho que você nem arrumou os livros.
    - Não! Deixa. Eu vou arrumar...
    - Não, mas não precisa... não tem nada, não. Eu sou meio maluca, né? É que às vezes eu viajo, começo a pensar nas coisas e falo sem nexo para os outros...
    - Um dia a gente precisa arrumar a vida, os livros. Remexer um pouco nas coisas, perceber as curvas da mesa entalhada, a luz da lua que entra pela janela, o azulejo na parede da cozinha. Um dia a gente tem que arrumar o pé da estante e reler a história daquela mulher, não é mesmo?
    - É. Acho que é.
    - Enquanto isso, deixa essa Iracema aí...

    ...Há vaga
    E vagas lembranças,
    Pois sei que me faltam fotos,
    Que me sobram fatos.
    E em fatias,
    a história se despedaça.


    - ...Deixa essa Iracema aí e me arruma uma cópia dessas fotos.
    - Se tiver o negativo, faço cópia pra você. Escuta. Iracema não é aquele da capa amarela?
    - Isso, capa amarela! Igualzinho Àquela foto guardada, sabe?
    - Ah, quer saber? Deixa pra lá esta história de fotos. Guardo estas imagens, mesmo amareladas, no coração. Pode deixar.
    - Sério?
    - É. Enquanto isso, deixa essa Iracema aí e vem pra cá, vem...

  2. 4 comentários:

    1. Anônimo disse...

      Gostei demais do seu texto menino Giovanni!
      Adorei a poesia entremeada nele, muito belo!
      Parabéns!
      Bjos

    2. Vivi disse...

      Muito bom!
      A mensagem está nas entrelinhas e no diálogo que se perde e é interrompido pelas divagações dos interlocutores. As vozes feminina e masculina se encontram e desencontram e às vezes, parecem a mesma pessoa. E fica tudo indefinido...e o resgate emblemático de Iracema me pareceu uma homenagem às heroína como figura central dos romances. Ela esteve flutuando em toda a história.

    3. Cris disse...

      Menino Giovanni,
      Mostrando a que veio...muito versátil e talentoso. Apreciei demais o seu texto. Parabéns!

      Bjs

    4. disse...

      Giovanni,

      O seu texto parece fácil, mas não é...Bastante complexo. assim como a alma feminina. ´
      Os diálogos estão bem feitos e o desenrolar da conversa entre os personagens estimula a leitura.
      Concordo com Vivi, em certos momentos, os personagens parecem ser a mesma pessoa. Talvez porque exista um ponto de encontro onde alma feminina e a masculina se confundem....não sei. Sei que gostei do estilo utilizado no texto, mostra versatilidade e personalidade.
      PARABÉNS.
      Rê Lima