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  1. Bulas e manuais

    24/04/2009

    Autor: Giovanni Nobile

    Não sei... Nunca tive o gosto pela leitura. Nem um livro, nem uma revista. Muito menos um jornal. Não era daqueles que lêem até bulas de remédio e quaisquer manuais. Não gosto de manuais. A não ser dos trabalhos manuais. Mas não daqueles manuais que ditam as regras, modos de uso ou coisa assim. Destes, nunca gostei. O legal é mexer, remexer, fuçar.
    Das bulas, nunca gostei, também. Não que fosse uma literatura ruim, pelo contrário. Lá existem boas palavras, coisas poéticas, até. A posologia é a parte mais interessante, em sua dose padrão. Mas em superdosagem, não há quem agüente. Enfim. Das bulas, não gosto, mesmo, das contra-indicações.
    Mas o nome – bula – é legal! Talvez porque é uma palavra de bom cheiro. É... Bula me lembra café, por causa do bule. Coisa boba, mas fazer o que? Cada pessoa tem suas manias, seus jeitos e a maneira de sentir o cheiro das palavras. Pelo menos comigo, é assim. Sinestesia, compreende? Bosque, por exemplo: pode até ser dos mais floridos, mas a palavra bosque sempre será uma palavra com um certo teor fétido. Pum, não. Todo pum é cheiroso, por mais porcalhão que seja. Pum lembra cheiro de talco de recém nascido. O que é diferente de peido... argh! Esse papo não tá cheirando bem...
    Só sei que de tudo isto de bulas e manuais, me veio à cabeça aquela música que me acompanhou nos finais de semana da minha infância: “...o tempo passa e o tempo voa...”. Tá, eu sei... Domingão na tevê não tem relação nenhuma com nada disso aqui. Mas percebi, de certo modo, que o tempo escoava pelo ralo.
    Comecei a ler!
    Aos poucos, compreendi o gosto estranho, que algumas pessoas têm, por ler bulas e afins. Certa vez, peguei-me lendo plastiquinho de bala, pote de xampu (mas ainda não decorei como se escreve isto. Se é com xis ou não...), revistas velhas ou novas. Jornais, mesmo sem boas novas. Papelzinho daqueles que são distribuídos em sinaleiros e propagandas de loja de vestidos de noiva.
    De ler uma coisa aqui e outra ali, resolvi escrever uma carta. Sei lá...Cartas têm um certo mistério, um charme, um toque diferente – além dos garranchos de uma mão que não escreve uma letra bonita, caligraficamente dizendo.
    Mas faço meus escritos, quase que egípcios hieróglifos. Mesmo assim, não mudei muito de mim. Continuo no mesmo endereço, no mesmo eu-andarilho de sempre. Hoje, leio mais... Mas isto não significa dizer que goste de tudo o que leio.
    Queria menos fofocas em revistas de bancas de jornais. Menos violência nos periódicos dominicais. Até as roubalheiras, praticadas por seres engravatados, poderiam diminuir, porque não agüento mais. Não que os textos não deveriam tratar disto, mas sim que não tivessem motivos para tais textos serem escritos.
    Leio, mas não gosto de tudo. Leio no jornal que meu dinheiro compra menos hoje do que comprava ontem. Leio na nota de um Real que nosso Deus seja louvado. Ao menos é um sinal de esperança.
    Leio, mas não gosto de tudo o que leio, entendem?
    Das bulas, só fico com a estranha sensação do cheiro, mesmo. Cheiro de café, por causa do bule. Mas do próprio café, veja você, não gosto muito do gosto, apesar de aos poucos estar me familiarizando com tal sabor junto ao leite. Porém, das bulas, só o cheiro. Nada das contra-indicações. Costumo pular este capítulo. Das bulas, só o cheiro.
    Ainda hoje não leio manuais. Não gosto das contra-indicações das boas bulas cheirosas, mas as indicações dos manuais me incomodam mais.
    Bom mesmo é viver! Viver livre, como o cheiro do café pelos corredores...
    Por isso escrevo... É uma parte de um viver intenso... É memória. É sensação que envio por carta para que se perca no tempo ou se guarde nas mãos de quem pegar primeiro.
    Não gostava de ler manuais. Mas o trabalho manual de escrever de um jeito, ainda, manual, é bom. Sem a muleta dos serviços de busca pela internet. Ah! Saudade de um jornalismo bem escrito que chegava quentinho em casa pela manhã.
    Quase como o pão e o cheiro do café.

  2. Ramalhete

    01/04/2009

    Por Giovanni Nobile

    No limite
    Deste amor
    Nas extremidades
    Desta dor
    Dei-te flor
    Por amizade
    Sem pensar mais na saudade
    Que deixara para trás
    Quis, sim, a felicidade
    Novos amores
    Novas flores
    Outras dores
    Que deste, já não sofro mais
    Dei-te flores, hoje,
    Meu bem,
    Para este amor que jaz
    Ramalhete, amor,
    Nada mais são que flores
    Harmoniosamente dispostas
    E, se hoje viraste, para mim, as costas
    Nada mais sou que dores
    Sintetizo-me nestas flores
    Que deixo para trás,
    Meu bem,
    Para este amor que jaz...

  3. Pedacinho de céu

    15/02/2009


    Autor: Giovanni Nobile


    Uma pessoa equilibrada. É isso que era. Ou não? Bom, pelo menos assim era reconhecida pelas pessoas que participavam superficialmente de seu cotidiano. Lígia até que também se considerava uma pessoa bem centrada e, sentada no sofá da sala de seu apartamento, pensava que isso era uma coisa boa. Achava-se tranqüila e serena. Principalmente aos domingos.
    É que uma vez sua percepção da vida mudou, tomou novos rumos. Nada que alterasse o destino, mas de alguma maneira Lígia sentia que pelo menos o caminho poderia ser mais florido.
    Foi quando, num desses domingos em que o sofá de Lígia era sua sombra, o copo de refrigerante, a sua água fresca, e a sala cingia todo o sentimento que ali pudesse existir. Lígia domingava quatro vezes por mês de maneira natural e quase que sem escapatória. Aos poucos seu estado de domingar passou a tomar conta da essência de Lígia que, aos poucos se viu domingando de segunda à sexta, também. E, às vezes, só pra dar aquela variada, também tomava lugar no sofá da sala.
    O pobre sofá de couro sintético já estava com a espuma moldada no formato do corpo de Lígia deitado, tamanho era o tempo em que a tela da tevê se transformava em sua janela pro mundo e que engraçadíssimos prohgramas de humor safado de sábado à noite procuravam, numa tentativa absurda e frustrada se tornar o seu pedacinho de céu. Não dava!
    Foi quando Lígia se descobriu uma pessoa não tão centrada. Foi ali, deitada no sofá vermelho, o qual ganhou da tia Josefa, a qual não tem nada a ver com esta história, que Lígia percebeu que programas de humor devem provocar contrações no músculos da face de modo que esta ação produza no mínimo um leve sorriso, em vez de testas franzidas e uma imensa sensação de que o tempo escoa por entre os dedos.
    Lígia levantou, foi ao quarto, meteu-se num vestido preto, calçou um par de tênis também pretos, pintou os olhos e a boca, beijou o espelho e disse a si mesma: “desligue a porra da tevê e sai por aí, mulher!”.
    Foi o que fez.
    Saiu sozinha. Voltou diferente. No meio do caminho, no balcão daquele bar underground, point da subversão daquele esboço de centro urbano desorganizado onde as multidões vivem a sós, que Lígia e sua língua se encontraram com a língua e a barba de Fábio, guitarrista de uma banda que havia tocado ali tempos antes. Agora, Fábio arriscava alguns solos no corpo de Lígia que, depois de... bem, ela perdeu as contas... depois de algumas bebidas já nem sabia quem era e, enfim, Lígia desequilibrou-se!
    Caiu, ralou o cotovelo ao tentar se escorar no balcão. Fábio a levou para casa. Lígia dormiu sozinha. Fábio foi embora. Nunca mais se viram. Lígia, apesar do desequilíbrio, era uma pessoa equilibrada e a vergonha pelo alto grau de álcool no sangue a fizeram não querer mais se encontrar com o moço que, dali, saiu para outra balada, onde ficou com Carla, depois Ana, mais a Tereza e até a tia Josefa, de Lígia, antiga dona do sofá vermelho, que há semanas havia se separado do marido e, numa tentativa de se salvar do naufrágio de relacionamentos sentimentais humanos, correu para um bar se abraçar com algum outro afogado, mas, como disse, Josefa não tem nada a ver com essa história. Se bem que Fábio perdeu uma boa meia hora ali, antes de ir pra casa.
    Lígia, já no domingo, domingava, como de costume.
    Seu desequilíbrio, porém, a pôs num novo equilíbrio, quando, num estalo, viu-se abrindo a porta da estante da pequena biblioteca que mantinha em um dos três quartos do apartamento para pegar um velho livro. Lígia percebeu que para se enfrentar a vida se fazia necessário muito equilíbrio, mas além disso, foi alfinetada e acordou para descobrir que o melhor da vida se faz em algumas imensas doses de desequilíbrio.
    Foi neste domingo que Lígia deixou de domingar e pegou o livro que prometera sempre ler, mas que nunca o fazia. Em sua dose imensa de desequilíbrio, desligou a tevê, abandonou o sofá, saiu para ler no parque, sentada num banquinho de madeira. Lá, encontrou Eduardo, qua fazia caminhada com seu cão, Jumbo. Lígia desequilibrou-se e, neste encontro, conheceu o motivo para não mais domingar e, mais ainda, para não se afogar com o resto do mundo numa triste jornada noturna pelos bares e bocas alheias.
    Lígia desequilibrou-se lendo as páginas de um bom livro, reescrevendo sua história com os novos personagens Jumbo e Eduardo e, assim, passeou de mãos dadas num caminho florido. No seu novo pedacinho de céu.

  4. Despertar-se

    24/01/2009

    Autor: Giovanni Nobile


    Despertar-se
    Chacoalhar a carcaça
    Enrijecida
    Quase insensível às dores alheias
    [e até mesmo às próprias]
    Pôr-se em pé
    [não só sentado]
    Para evitar essa mutilação calado
    E assumir-se bípede
    Ao ir à caça da vida
    Praticamente invisível, sem cores,
    Por onde passeia.
    Pedalar
    Viver este ciclo
    Despertar-se
    Chacoalhar a carcaça
    [também interior]
    E construir, a cada giro do pedal,
    Um mundo, mil mundos,
    Oriundos de contemplação,
    Conhecimento,
    Emoção.
    Despertar-se,
    A cada pedalada,
    Da pilhéria da vida,
    Amiúde na mesmice,
    Para o belo que passa
    Pelo ciclo da vida.
    Lançar-se...
    Lançar-se ao mundo sobre pedais
    Lançar mundos ao mundo, e mais...
    Viver o tudo
    [perigosamente, hoje, tão próximo ao nada]
    Na constante levada
    No ciclo da vida.
    Despertar-se
    E perceber o melhor da vida: viver
    E sentir o vento no rosto: sorrir
    E poder chorar, pois, aí, então,
    Já sentirá as próprias dores
    E as outras também
    Assim, na sensibilidade despertada,
    A cada pedalada, reconhecer o tudo,
    Principalmente no que antes era nada
    E perceber o quão perplexo é o inverso,
    Quando se acredita que o nada é tudo que se tem
    Pedalar
    Despertar-se
    E lançar mundos ao mundo,
    Para, talvez,
    De uma só vez,
    Suportar toda esta vaziez

  5. Juramentos

    07/01/2009

    Autor: Giovanni Nobile

    Promessas desmedidas
    Descabidas
    Mal juradas
    Palavras emitidas
    Prometidas
    Descaradas
    Campeia em busca de um não sei o que
    Corre para lá e para cá
    E diz que vive
    Que está tudo normal
    Que é feliz...
    Bicho-homem,
    Bicho-bicho,
    Vive, nada!
    É tudo mentira...
    Mente
    Promete
    Mete
    Mente...
    Mente promessas desmedidas
    Descabidas
    Mal juradas
    Bicho-homem,
    Bicho-bicho,
    Que nem sabe a qual nicho pertence
    E faz, da vida, um lixo...
    Pouco se lixa
    Chateia
    Inveja
    Lamuria
    Escarra
    Esperneia
    E no desespero da vida, promete!
    Promete aos céus, aos anjos, aos homens.
    E quando menos se espera lá está o bicho prometendo a alma ao diabo
    Em palavras emitidas
    Prometidas
    Descaradas
    Explora
    Inveja
    Mata
    Mente
    Promete
    e diz que vive...
    ...que vive feliz...
    Vive nada!
    É tudo mentira.
    Mente,
    Confabula
    E não acorda desta fábula
    Desta vida,
    Pura dúvida,
    Toda dívida,
    Inteiramente dividida,
    Toda ela, juramento vazio,
    Nossa grande ficção!

  6. Tempo

    18/12/2008

    Autor: Giovanni Nobile

    Tempo, tempo...
    A eternidade
    É uma semana.
    Passa o tempo
    E, logo, um beijo.
    E o amor,
    Que passa,
    Tempo, tempo,
    Não dá conta.
    Também passa...
    Passa
    E leva embora.
    Deixa-me só.
    Solitário.
    Mais uma vez o tempo...
    Tempo logo chega
    E pousa o rosto
    Sobre o ombro
    Já cansado
    Ele, agora, já sabe
    Aquilo que não é mais segredo:
    Vivo na solidão
    E, em meio a esta multidão,
    Já nem sei quem sou.
    Tempo, tempo
    Tempo passa.
    De dezembro,
    Logo vem janeiro.
    Talvez assim também eu seja:
    Só.
    Eu sou mais um que passa:
    Passageiro.

  7. Segredo

    04/12/2008

    Autor: Giovanni Nobile

    - Psiu!
    - Eu?
    - É! Posso te contar um segredo?

    - Não!

    ---

    (O texto acima foi escrito no formato 'microconto', numa tentativa de produção de novas formas literárias e, também, pela falta de habilidade em lidar com o tempo, no meu caso).

  8. Obsessão

    14/11/2008

    Por: Giovanni Nobile


    Esta minha mania,
    Esta minha loucura

    É a rotina deste vício de desejar o que não posso
    De querer o que é o errado
    De uma noite de andarilho
    Pelos rumos errantes
    Por maneiras variadas
    Numa passada desvairada
    De buscar além do que meus braços alcançam
    Esta minha loucura me cansa.

    Cansam-me.

    Minhas manias me cansam
    Quero e desquero de um minuto a outro
    De uma a outra
    Na mesma batida
    Na constante toada
    Num hábito prejudicial de outra vez acreditar que posso tudo
    Que tudo quero
    Que tudo posso
    Que tudo passa
    E que, depois, logo jogo tudo fora
    (quase tudo)
    Sem olhar pra trás...
    À frente reside nova idéia fixa doentia

    Esta minha mania
    Esta minha loucura

    Estas minhas maneiras de entender o mundo
    De querer meu mundo
    De mudar os planos
    De alterar os rumos
    Continuadamente vagante
    Este alvo doce de meus gostos
    Dos meus infinitos desejos
    Dos incontáveis propósitos
    E dos rumos errantes

    Esta minha mania
    Esta minha loucura

    Estes meus quereres erradios
    Erradiam vontades
    Impulsos
    E no pulso
    De cada batida
    Anseiam pela novidade
    Abandonam pelas sarjetas as velhas conquistas
    E já buscam novos trunfos
    Futuros abandonos

    Nesta loucura
    Nesta mania

    Nesta maneira de querer tudo aquilo que não tenho
    Incansável obsessão

  9. Indefinições

    28/10/2008

    Por: Giovanni Nobile

    Há vaga...
    Vagas lembranças,
    Esquecimento.
    Cimentado peito,
    Que já não vive as dores passadas...


    - Talvez seja bom sair da rotina. Às vezes, pode fazer bem. Sinto saudades dos nossos discos arranhando na vitrola. Dos cheiros dos livros ajeitados, meio que sem ordem, naquela estante já capenga, calçada por um Iracema todo surrado. Vontade de uma cerveja, agora, como nos velhos tempos, ouvindo Bob, na vitrola. Lembra?
    - Lembro, claro que lembro.
    - De mim, dos livros ou do Bob?
    - A capa do livro era amarela, não era? Ah! Não sei. Acho que vivo sonhando. Sonho acordado, de vez em quando. É que sou meio desligado. Você sabe. Quer matar a curiosidade?
    - Hã?
    - Nada não. Você não está prestando atenção, não é?
    - Estou, sim. É que vivo sonhando. Você me conhece. Lembra daquele sonho que a gente sonhou junto?
    - qual?
    - Você se recorda! Tinha uma voz feminina...
    - Ah, não me lembro muito bem, não. Tenho vagas lembranças, somente. O tempo vai passando e parece que nebulosidades impedem que alguns raios de sol cheguem. É como naqueles desenhos animados. Sabe quando chove só n’a gente?

    ...Há vaga
    Neste peito já surrado
    Na lágrima seca no rosto
    No vão que existe no vazio do que um dia foi abraço
    Há vaga
    E vagas lembranças, de dores já passadas...


    - Eu fico de cara. Tem momentos em que observo a lua sozinha. Somos sós: eu e a lua. Tenho leves impressões de que estamos a sós. Só nós dois. E pesadas pressões de que o mundo todo não dá a mínima. Estamos sós. Parece que todos se esquecem de parar um pouco, não é?
    - Tenho vagas lembranças. Uns flashes, somente. Estamos a sós.
    - Eu, não. Lembro de cada detalhezinho. Das curvas gastas dos entalhes dos móveis da sala de estar, dos azulejos trabalhados, já manchados, mas ainda belos. Ela me odeia?
    - Quê?
    - Eu sei. Pode falar.
    - Bom, na verdade acho que todo mundo sabe, mas não vem ao caso, né?
    - É. Eu toquei no assunto por curiosidade. Na verdade, só pra confirmar, mesmo.
    - (...)
    - É tudo tão estranho.
    - É verdade, eu também acho.
    - Na verdade eu já não sei o que mais eu acho, mas já achei algo por um tempo. Eu acho. Mas não sei nada mais. Porque os meninos nunca assumem?
    - Hã?!
    - Eu era apaixonada por um menino na quinta serie! Gostei dele ate a sétima, oitava. Guardei até um papel de bala que ele me deu. Era doce. De mel, sabe? Era como o favo que a abelha fabrica no tronco da Andiroba.
    - Tinha, na doçura, o veneno?
    - Quê?
    - Iracema. Aquele que calça o pé da estante manca. Ah! Nada... continua!
    - Esqueci de onde parei. Só sei que daria uns capítulos de livro essa história. É Engraçado. Não sou velha, mas vejo umas coisas do meu passado e acho graça. Fico confusa. Você sente isso?
    - Tudo passa sobre a terra. Mas tenho pouca memória de tudo isso. Até já não sei mais se tudo isso um dia foi tudo ou se sempre foi nada. Acredita que não tenho nenhuma foto desta época?
    - Dessa minha atual vida adulta quase não tenho foto nenhuma, também. Uma madrinha minha me disse que as belas imagens a gente guarda é no coração...
    - É. O resto são fotos de praia, do natal e de aniversários de quando eu era criança e algumas outras fotos três por quatro que ficaram jogadas dentro de algumas agendas velhas.
    - ...Mas eu tenho foto sua em casa. Olhei num dia desses. Uma foto sua, me fotografando. Você não lembra desse dia?
    - Não lembro ao certo, mas lembro que você me falou algo.
    - Bom, devo ter falado mesmo.
    - Não, acho que não. Eu devo ter sonhado. Vivo sonhando acordado, você sabe disso.
    - Ué, mas dez minutinhos sonhando de verdade não faz mal pra ninguém. Ela já teve ciúmes?
    - Não, não. Mas é que deixá-la por baixo, assim, pegou mal, não é?

    ...E Sempre depois de um tempo acontece algo que surpreende, mas depende de como você encara as coisas.
    Têm coisas boas, coisas ruins...


    - Ah! É normal, né? Faz parte da vida. Fica tranqüila, não é nada grave. A gente tá sempre mais ou menos, na verdade. E, às vezes, fica meio por baixo, mesmo...
    - É. Mas há o que não merece ficar por baixo...
    - (...)
    - No fim, acho que você nem arrumou os livros.
    - Não! Deixa. Eu vou arrumar...
    - Não, mas não precisa... não tem nada, não. Eu sou meio maluca, né? É que às vezes eu viajo, começo a pensar nas coisas e falo sem nexo para os outros...
    - Um dia a gente precisa arrumar a vida, os livros. Remexer um pouco nas coisas, perceber as curvas da mesa entalhada, a luz da lua que entra pela janela, o azulejo na parede da cozinha. Um dia a gente tem que arrumar o pé da estante e reler a história daquela mulher, não é mesmo?
    - É. Acho que é.
    - Enquanto isso, deixa essa Iracema aí...

    ...Há vaga
    E vagas lembranças,
    Pois sei que me faltam fotos,
    Que me sobram fatos.
    E em fatias,
    a história se despedaça.


    - ...Deixa essa Iracema aí e me arruma uma cópia dessas fotos.
    - Se tiver o negativo, faço cópia pra você. Escuta. Iracema não é aquele da capa amarela?
    - Isso, capa amarela! Igualzinho Àquela foto guardada, sabe?
    - Ah, quer saber? Deixa pra lá esta história de fotos. Guardo estas imagens, mesmo amareladas, no coração. Pode deixar.
    - Sério?
    - É. Enquanto isso, deixa essa Iracema aí e vem pra cá, vem...

  10. Por Giovanni Nobile

    A casa é pequena. O muro é baixo. Vista de frente, o que se vê é um quintal também pequeno ao lado direito, em frente da casa. Do lado esquerdo, existe uma pequena área com vasos de flores no chão, umas samambaias na parede e algumas cadeiras preguiçosas para se sentar e olhar. Observar. E só. O lado de dentro da casa não nos interessa. O que lhes conto acontece do lado de fora, pra lá do muro, até.

    Toda manhã, uma menina passava em frente da casa. A casa era grande. O muro era alto. Vista de frente, via-se um imenso quintal e, nele, inúmeras, múltiplas histórias se passavam pela imaginação corisca da menina. Ao lado, plantas pelos vasos no chão. Plantas pelos vasos no teto, pelas paredes. Samambaias. E Cadeiras. Em uma delas, um senhor que descansava.

    Ao final de cada manhã a menina passava em frente da casa. Nada via do lado de lá do muro. Por isso a menina corria. Corria para o muro acabar logo e chegar até o portãozinho, por onde, através das grades, ela podia olhar toda a casa, os vasos, o velho senhor na cadeira, o quintal imenso e aquele pé de pitanga carregado, carregado, bem ao lado do muro.
    A menina lambia os beiços, diminuía o ritmo de sua corrida e passava a caminhar. Depois, a andar mais lentamente. Mais devagar. Lento. Quase se rastejando de tão minúsculos que eram seus passos. Fazia isso que era pra aproveitar melhor o tempo que podia observar aquelas pitangas madurinhas no alto, bem alto, lá longe, na pitangueira.

    A menina passava, então, do limite do portão, que se transformava novamente em muro, até que a casa já não era a mesma, mas, sim, a do vizinho. Daí já não tinha mais graça. A menina lembrava que tinha que correr e voltar para sua própria casa.
    O homem, lá de dentro, está sentado em sua cadeira de alumínio, daquelas que tem tiras de plástico trançadas, e se espreguiça. Ele já está cansado. Passa o tempo a cuidar do seu jardim, daquele quintal, das flores dali e das pitangas.

    A menina passa ali todo dia. Toda manhã.

    O velho das pitangas não é bobo. Ele sabe que ela deseja aqueles frutos. Ela também não é boba. Sabe que o velho sabe que ela quer as pitangas. E, nisso, o tempo passa e ela pensa num jeito de não deixar o velho pensar que ela vai pegar aquelas pitangas.
    Certa vez, a menina olhou para o alto do muro, pouco antes de chegar ao portãozinho da casa, e ficou ali, namorando as frutinhas. Torcendo para que alguma caísse. A menina era pequena. Do lado de dentro da casa o velho, sentado em sua cadeira não a via. Ou fingia. Ele se distraía ao ver um beija-flor chegar em uma das margaridas de seu jardim.

    Enquanto isso, a menina, lá fora, esticava-se toda, na ponta dos pés, para tentar chegar até o primeiro galho mais baixinho. Ela calçava meias brancas e um sapatinho preto. Um vestido vermelhinho. Esticava-se toda, nas pontas dos pés e mordia a língua do lado da boca, fazendo careta, esperando sua pitanga cair. Não caía.
    A cada manhã, ela passou a trazer no bolso esquerdo de seu vestidinho, uma pedra. Corria até acabar o muro e, quando este estava quase terminando, próximo do portãozinho, ela punha a pedra encostada na parede.

    Dia após dia, pedra depois de cada pedra, fez uma escada. E ali subia, esticava-se toda, mordiscava a língua, fazia careta, e não conseguia.
    Saía emburrada, brava com o bico armado, já armando novos planos para seu maior sonho. Alcançar aquelas pitangas. E que outros sonhos teria a menina? Sim! Alcançar as pitangas era seu maior sonho, a prova de que Deus existia.

    Resolveu, então, que além da escada de pedras que construíra, precisaria de algum graveto, algum pedaço de galho que lhe servisse para alcançar o símbolo de seu maior prazer. Sim, a pitangueira.
    Foi que, certa vez, de manhã, na escola, teve festa de aniversário de uma amiga. E, como festa de aniversário é, teve bolo, docinho, refrigerante e balões.
    A menina das meias brancas, do sapatinho preto e de vestido vermelho, feito as pitangas que almejava, pediu alguns balões para levar para casa. Escolheu três: um amarelo, um azul e um vermelho. A professora pegou um barbante e amarrou os três com um só nó.

    A menina saiu da escola feliz da vida com seus balões. Ela sempre gostou de balões. Para ela, bexigas tinham algo especial, que lhe trazia a sensação de liberdade, uma vez que balões, diferente de gente, podem voar livre pelos ares, feito anjos. Ela queria poder voar, para alcançar aquelas pitangas.
    Naquela manhã a menina não correu ao chegar no muro da casa. Até pensou em correr, mas ficou com medo de que seu símbolo de liberdade escapasse. Assim, preferiu andar calmamente, com os balões presos.

    O velho que sempre percebia a menina somente quando ela já estava na frente do portãozinho, nunca teve tempo de se levantar e ir até ela. Ele já estava velhinho, cansado e não podia se arriscar em movimentos muito bruscos.
    Só que desta vez o velho percebeu por cima do muro, três balões. Um vermelho, um azul e um amarelo. Pensou que poderia ser a menina. Levantou-se.
    Na medida em que a menina se aproximava do portãozinho, o velho com sua bengala caminhava em direção à pitangueira. Os dois movidos por seus prazeres: a menina, pelas pitangas; o velho, pelo sorriso de uma criança.

    Chegaram juntos. Foi quando o velho alcançou um punhado de pitangas suculentas, vermelhinhas, bem daquelas que a menina namorava em frente ao portão. Alcançou aquelas pitangas e esticou o braço na direção da menina, esperando que o sorriso brotasse de seu rosto.
    Antes, quando a menina estava caminhando pela calçada, ao lado do muro, lembrou-se do dia em que quase alcançou uma pitanga. Na verdade, chegou a alcançá-la, mas de tão madura, a pitanguinha caiu no chão para o lado de dentro da casa. Neste dia, nem precisou de graveto nenhum.

    Foi o dia em que a menina chegou mais perto da frutinha, com suas próprias mãos. Não conseguiu, mas mesmo assim saiu super feliz, já que viu que havia a possibilidade de um dia conseguir. Saiu lambendo não só os beiços, mas, agora, todos os dedos da pequena mãozinha que chegou a alcançar, mesmo sem agarrar, a pitanga madura.
    Na medida em que se aproximava do portãozinho e, portanto, da pitangueira, a menina pôde ver a penumbra do velho pelo portão. Abriu os olhos arregalados. Primeiro, de espanto, depois... nem ela mesmo sabia o que viera depois. Quando chegou até o portão e viu o velho com um punhado de pitanguinhas maduras na mão, soltou os balões.

    Soltou os balões e, junto, um choro, uma lágrima, um grito de ‘não’ sofrido e saiu correndo.
    Não era um choro de criança que o velho esperava. E nem era um velho lhe entregando pitangas, o que a menina sonhava. Os balões escaparam, assim como os sonhos dos dois escorreram por entre os dedos da menina. O velho não viu sorriso. E a menina perdeu a magia que existia na possibilidade de roubar pitangas.

    Os dois foram cada um para seu canto. A menina correu embora, aos prantos. E o velho, cabisbaixo, voltou para a cadeira. Ambos se perguntaram: será mesmo que existe Deus?
    Alguns dias se passaram e o velho teve uma idéia: correu para os fundos da casa, onde tinha algumas velhas ferramentas. Pegou uns pedaços de madeira, pregos, martelo, serrote e tinta.

    A menina, que há tempos nem olhava para a casa, resolveu passar ali pela frente, novamente, só para ver se as suas pitanguinhas continuavam do jeito que ela havia deixado.
    Ela chegou ao começo do muro. Pensou em correr, para chegar mais rápido até o portão. Ficou com receio. Preferiu caminhar. Na medida em que se aproximava do portão, sua barriga gelava. Parecia que era a primeira vez que a menina tentaria pegar as pitangas.

    Foi quando, ao chegar até o portão, a menina viu uma placa pregada logo ao lado da pitangueira, nas cores vermelha, azul e amarela, com a seguinte inscrição: proibido roubar pitangas!

    A menina sorriu! Esticou-se toda, na ponta de seus sapatinhos pretos, mordia a língua fazendo força para alcançar aquela frutinha vermelha no primeiro galho que pudesse relar. Ela conseguiu. Alcançou a pitanga, agarrou-a e a saboreou como nunca havia imaginado.
    Sentiu o sabor da frutinha, sentiu-se livre e leve feito balões que voam como anjos pelos ares. Sentiu-se mais próxima de Deus e sorriu.

    Para o velho, depois de presenciar a cena de sua cadeira de espreguiçar, ao lado das samambaias, seu questionamento de outrora estava respondido.

    Nesta instante, um beija-flor beijou uma de suas margaridas no jardim.