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  1. por Medéia


    Seu nome não era Alice, mas seus cabelos eram loiros e cacheados, e seus olhos de um azul muito claro. A idade também regulava, ainda não era mocinha, mas já quase não era criança. Não usava vestidos românticos, e sim camisetas folgadas e jeans surrados. Seus pés, quando não estavam descalços, calçavam tênis de lona branca. Gostava de passear no pequeno parque atrás da casa da sua avó. E era lá que estava quando a avozinha procurava e não encontrava a menina.

    As árvores do parque eram antigas de raízes grossas e folhas largas. A garota imaginava que eram moradas de seres mágicos e costumava levar biscoitos feitos em casa e flores do jardim da avó e deixava para os pequenos seres levarem. Dois bancos de ferro, pintados de laranja, ocupavam cada qual um lado do caminho que dividia o parque em dois, e um pequeno lago represado de um riacho que corria ali atraía os pássaros para um banho. Algumas árvores eram tão grandes e velhas que se mesclavam e fechavam parte do caminho criando um teto verde vivo. O sol nem mesmo conseguia penetrar na sombra que as árvores, bem fechadas, faziam no chão. Um gramado aqui e outro ali completavam o espaço lúdico.

    Era o cantinho mais quieto que a menina podia querer para deitar na grama, ouvir o barulho dos pássaros e da água, sentir o perfume das flores silvestres, respirar ar puro e ler. A leitura era seu prazer preferido e muitas pessoas não compreendiam que criança era esta que preferia livros a brinquedos. Mas ela sabia que a brincadeira de ler era muito mais prazerosa pois conseguia imaginar cada um dos lugares que freqüentava na leitura. Às vezes era um pirata, navegando mares bravios, lutando com soldados malvados e bebendo rum com seus companheiros. Outras vezes era Emília, correndo pelo Sítio, brincando com o Visconde e o Marquês de Rabicó e sendo costurada pela Tia Anastácia. Podia viajar a Roma e vestir togas brancas, ou à China com um quimono vermelho e às vezes até mesmo ser uma índia e usar somente penas sobre o corpo nu. Ler era realmente sua brincadeira predileta.

    Naquela tarde quente, de suas férias de verão, depois do almoço farto, montara uma bela cesta para fazer um piquenique. Pretendia passar a tarde inteira no parque e não queria sentir fome mais tarde. A cesta da avó, com um pano de copa colorido, alguns biscoitos doces, uma garrafa de água quase congelada, quatro bergamotas, uma maçã vermelha brilhante e o livro que estava lendo: Alice no País das Maravilhas. Correu para o parquinho no forte sol que fazia e sentiu-se aliviada quando as sombras das velhas árvores apareceram para lhe dar um alívio. Uma brisa fresca soprava levemente assobiando uma canção que os pássaros cantavam como se esperassem a menina. Antes de ler, deitou-se em um dos bancos olhando para o alto, entrevendo entre os galhos das árvores o azul e limpo céu iluminado pelo brilhante sol que fazia. Um dia perfeito e maravilhoso.

    Seus olhos não conseguiam manter-se abertos, e pouco a pouca sua consciência foi sendo perdida para o mundo dos sonhos. Um mundo onde a sua viagem literária continuava. Sonhou com coelhos falantes e rainhas malvadas. Com chás intermináveis e com o gato listrado que sumia e deixava para trás apenas o seu sorriso. Um barulho diferente lhe fez acordar e pensar no que podia estar acontecendo no seu parque. Abriu devagar seus olhos e percebeu um movimento abaixo de sua cabeça. Olhou para sua cesta que estava ali e a viu remexida. Alguém pegara alguns biscoitos e seu mais precioso tesouro, o livro que lia.

    Sentou-se de um salto e olhou ao redor, foi quando viu uma parte da vermelha capa de couro do livro por trás de um grosso tronco de uma velha árvore. Estava ali em um momento e logo depois não estava mais. De um salto a menina rodeou a árvore tentando encontrar o seu precioso livro. Mas ele parecia ter evaporado no ar. O tronco da árvore era muito grosso e com muitas nervuras, o que indicava a idade avançada da mesma. E, enquanto procurava, ela notou algo estranho: um pequeno nicho, em que mal cabia sua mão a uns três palmos do chão. Era tão pequeno que seu livro não podia estar ali, mas mesmo assim ela experimentou. Colocou sua mão no buraco com muito cuidado e sentiu uma pequena alavanca. Quando a segurou e a puxou, um ligeiro movimento fez abrir uma pequena porta ao lado do nicho.

    Com a curiosidade que lhe era peculiar, ela espiou o escuro caminho que se abriu na árvore. Uma escada em espiral que descia e parecia não ter fim. Seu livro era precioso e ela mal estava na parte onde Alice chegava ao País das Maravilhas. Se não o recuperasse como ia descobrir o final da história? Desceu vagarosamente com medo de cair, pois os degraus eram pequenos para seus pés. Depois de muito tempo descendo, sem nem mesmo enxergar mais a luz que vinha da porta, a menina esbarrou com uma parede. Mas o que era aquela parede? Apalpando-a descobriu uma maçaneta na altura do seu joelho.

    Com a respiração ainda ofegante pela descida, abriu a portinha e abaixando-se descobriu estar em um lugar maravilhoso. Parecia o seu parque, mas era diferente. Muito mais vivo e colorido. Com muitas flores com cores que nunca tinha visto e que nem mesmo sabia o nome. Pássaros exóticos voavam no céu de um azul tão profundo que fazia seus olhos doerem. Mas o mais impressionante eram os livros. Muitas e muitas pilhas de livros estavam encostados nas árvores em montes bem organizados. Sem mesmo se dar conta percebeu que se aproximava do monte mais próximo para ler os títulos. Muitos clássicos: O Guarani, Sonhos de Uma Noite de Verão, A Ilha do Tesouro, Robinson Crusoé; mas alguns com títulos estranhos e desconhecidos: Uma Perna Manca, O Agricultor da Horta Azul, Milagres não acontecem na Vila Torta. O único livro que não via era o seu Alice no País das Maravilhas, mas também eram tantos livros. Resolveu então procurar entre as pilhas.

    Já estava ali há um bom tempo procurando quando por detrás de uma montanha de livros surgiu um pequeno homem com cara de gnomo e roupa de equitação. Sua roupa de um tom verde e preto o confundia com as árvores. E seu olhar de espanto mirava os olhos azuis da garota. Pareceu um longo tempo, e talvez eles tenham mesmo se olhado por horas, então ela resolveu lhe perguntar: “Quem é você?”.

    O pequeno ser, ainda desconfiado, lhe respondeu: “Sou Bookie, o Guardião dos Livros Esquecidos. O que você faz aqui?”. Ele parecia saber quem ela era, porém continuava melindrado com sua presença.

    Ela então lhe sorriu e disse: “Prazer, Sr Bookie. Sou Clara e estou aqui procurando meu livro”.
    (Você, caro leitor ainda não havia sido apresentado formalmente à nossa leitora Clara, mas tenho certeza que já está lhe conhecendo muito bem.)

    “Mas você não pode estar aqui. E não pode levar o livro. Uma vez esquecido pelo dono os livros vem parar aqui na Terra dos Livros Esquecidos”. – ele disse que um pouco de arrogância.

    “Caro senhor, eu não esqueci meu livro. Estava apenas fazendo uma sesta no banco do meu parquinho antes de iniciar a minha aventura com o livro. Você o pegou enganado, creio eu.”

    Clara parecia estar falando com sinceridade e Bookie não lembrava de tê-la visto no parque, mas também não olhara para o alto. Podia ter se enganado. Fazia muitos séculos desde que havia se enganado pela última vez. Precisava de uma aposentadoria, ou pelo menos umas férias. Errar não fazia parte de seu profissionalismo. Ela ainda estava olhando-o com ansiedade alegre. E ele não pode deixar de lhe sorrir.

    A tarde transcorreu rápida enquanto Bookie contava à Clara que muitas pessoas ganhavam ou compravam livros, mas não queriam realmente tê-los. Então os “esqueciam” freqüentemente em lugares como velhos armários (que nunca são abertos), bancos de praça, atrás de estantes junto com muito pó e em vários outros inusitados e estranhos locais. Alguns eram até mesmo jogados no lixo. Ele então era encarregado de trazê-los para a Terra dos Livros Esquecidos onde eles ficavam até que alguém os adotasse. Foi então que Clara ficou surpresa: podia-se adotar livros? “Como?” – ela perguntou.

    Ele explicou que sempre que alguém precisasse muito de um livro e não tivesse como obtê-lo, ele podia fazer com que o livro aparecesse misteriosamente próximo a esta pessoa. Clara sorriu lembrando de duas vezes que isso lhe aconteceu nos últimos anos. “Romeu e Julieta” apareceu sobre sua cama e, apesar de sua mãe negar o presente, ela sempre achou que ela só o fazia por suspense. “A Pata da Gazela” que precisava ler na escola ela encontrou caído na calçada em frente de casa.

    Quando o sol começou a sumir, Bookie lhe mostrou como voltar ao parque e lhe entregou seu livro junto com outros dois clássicos da literatura brasileira: “Urupês” e “Senhora”. Desejou-lhe uma boa noite e convidou-a a voltar quando terminasse a leitura. Afinal, na Terra dos Livros Esquecidos o que não faltavam eram livros para adotar.

    De novo na escada espiral a escuridão era total, Clara subia sem parar e parecia que o caminho era ainda mais longo do que na vinda. Suas pernas cansadas pelo esforço tremiam e seus olhos não viam absolutamente nada. Guiava-se apenas pelo baixo corrimão. O ar já lhe faltava pelo esforço feito e pela falta de espaço para respirar. Foi então que sentiu a parede com uma pequena porta. Abriu a porta e uma luz tão brilhante como fogo lhe ofuscou os claros olhos. Não podia ver nada, na cegueira temporária que se segue um tempo longo na escuridão. Quando consegui focar sua visão, estava deitada no banco do parque, com seu livro vermelho no colo, aberto na página onde havia parado de ler. O sol ainda brilhava forte, o que significava que ainda era cedo.

    Tudo havia sido um sonho, produto da sua fértil imaginação. Sentou-se no banco do parque e olhou ao seu redor. Tudo estava ali como lembrava, não havia a árvore grossa que a levara a Terra dos Livros Esquecidos. Então só podia ter sonhado. Mas era tudo tão real.

    Resolveu fazer seu lanche e ao levantar a tampa da cesta com os biscoitos e a maçã, surpreendeu-se com os dois livros que Bookie lhe dera e a total falta dos biscoitos. Além de uma pequenina mordida na maçã. Um sorriso aflorou em seus lábios de quase mulher, e sua mente, ainda menina, lembrou da aventura que teve durante à tarde. Enquanto isso tomava a água ainda fresca e comia o restante da maçã.

    Se você procurar bem, pode ser que encontre um livro quando dele precisar.


  2. 6 comentários:

    1. Cris disse...

      Medéia,
      Que fábula mais linda!!!
      Temos pontos em comum em nossos textos...(minha personagem chamava-se Clara inicialmente, mas mudei em homenagem a minha sobrinha Stella).
      Sua ilustração ficou perfeita, graciosa...amei o pequeno gnomo.

      Parabéns!!
      Bjs

    2. Cris disse...
      Este comentário foi removido pelo autor.
    3. Vivi disse...

      Uma revisita ao mundo maravilhoso da imaginação em que Clara é meio Alice, é meio cada um de nós, leitores. Um enaltecimento do universo literário. Me reconheci em muitas partes dessa história.
      Gostei!

    4. parecido com o da Cris, mas aqui ao acordar teve uma pitada a mais a meu ver. o lance da fábula funcionou legal, com um viés infantil. e o resgate do Caroll tb foi bacana. Uma boa história pra ler para um criança antes de dormir (e depois deixar um livro para ela achar) ehehehe

    5. Boa idéia, Rodrigo!
      Vou guardar esta para ler para meus filhos (quando os tiver) e antes de dar um livro para eles. Quem sabe "Alice no País das Maravilhas"?

    6. disse...

      O seu texto me fez lembrar dos livros que lia quando pequena.
      Que saudades!
      Crescemos, mas não devemos perder a criança que existe dentro da gente.
      Parabéns!!
      Abs, Rê