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  1. A Promesssa

    08/10/2009

    Por: Cris Costa
    Com um beijo na testa, Nila foi deixada pela mãe na porta da nova escola. O pai havia lhe beijado a face antes de sair para o trabalho.

    Ela tinha acabado de se mudar para a cidadezinha. Ao ser levada pela diretora para a sala de aula da primeira série, aconteceu aquele momento mágico. Nila conheceu Fábio. Ele era p-e-r-f-e-i-t-o. Moreno, cabelos cacheados, olhos azuis e lábios carnudos. Apesar de algumas “janelinhas”, seu sorriso era lindo. A professora acomodou Nila na carteira ao lado dele. Ficaram amigos, a empatia foi imediata. Ao chegar em casa, Nila correu até a mãe eufórica e contou:

    - Conheci meu príncipe encantado! Ele é o homem da minha vida! Nosso primeiro beijo será em um dia de chuva e nosso casamento na primavera, no sítio do vovó.

    A mãe riu da inocência da filha, por acreditar que tinha conhecido o homem da sua vida aos seis anos.

    Na sétima série, Fábio ficou ainda mais bonito, pois estava usando aparelho dentário e logo teria o sorriso ainda mais perfeito. Mantinham-se amigos, quase inseparáveis.

    - Mãe será que é estranho beijar de aparelho?

    A mãe surpreendeu-se com a pergunta e respondeu de pronto o que pensava, sem avaliar muito o que significava a curiosidade da filha.

    - Creio que não! Deve ser a mesma coisa de beijar sem aparelho. Porque esta pergunta Nila?
    Nila refletiu por um segundo... - ”Tinha medo que aqueles ferrinhos grudassem...Mãe, quero perder minha virgindade com o Fábio...”.

    A mãe engasgou com a água que tomava afinal, Nila tinha apenas quatorze anos e nunca tinha pensado em falar sobre o assunto com a filha. Nila ainda era uma criança.

    - Filha, ainda é muito cedo para pensar em perder a virgindade...é uma decisão que deve ser bem pensada...

    - Mãe! Não!!! Não posso esperar mais...sou a única BV da escola e todos os outros ficam me zoando...
    – lágrimas escorreram pelo rosto de Nila, ela estava realmente magoada.

    A mãe sorriu timidamente e pode voltar a respirar. Já tinha ouvido milhares de vezes o termo BV (boca virgem). Estalou um beijo na testa da filha e só conseguiu dizer:

    - Tudo há seu tempo Nila! Se tiver que ser ele será!
    - Mãe, eu prometo que meu primeiro beijo será com o Fábio...eu quero que seja com ele meu primeiro beijo!

    O baile de formatura do primeiro grau chegou. Nila tinha certeza que seria naquele dia que receberia o beijo de seu grande amor. Infelizmente Fábio convidou Drica para acompanhá-lo. Nila passou a noite que seria a mais especial de sua vida, abraçada ao travesseiro, chorando até que seu depósito de lágrimas secasse. Decidiu que se afastaria dele. Concluiu que se ele sentisse falta de sua companhia, com certeza, iria beijá-la na reconciliação.

    No segundo grau, passaram a estudar em salas separadas. Fábio começou a namorar Vivi. Quando os lábios carnudos dele tocavam o da namorada, Nila imaginava aqueles lábios úmidos tocando os dela e, sorria ao ver o sorriso de satisfação de Fábio ao final do beijo. Nila desejasse cada vez mais ser beijada por Fábio e sabia que valia a pena esperar pelo primeiro beijo. Seria mesmo de Fábio.

    Após a formatura, Nila correu ao encontro dele para felicitá-lo. Conheciam-se há anos e a jornada escolar tinha chegado ao final. Em alguns dias, ela iria para a faculdade de direito e ele para a de medicina. As universidades ficavam em cidades diferentes. Era o momento exato para ficar eternamente na memória.

    - Fábio! Parabéns!­ – e esticou-se para abraçá-lo, abraço retribuído – Não acha que eu mereço um beijo de despedida? – Nila nem pensou muito, era sua última chance, o famoso “é agora ou nunca”.

    - É claro minha adorada Nila! – ele segurou o rosto dela entre as mãos, olhou-a nos olhos e foi lentamente com o rosto na direção ao do dela...encostando carinhosamente os lábios na face de Nila – Você merece tudo o que desejar minha doce Nil...sempre nos encontraremos nas férias. Juízo na facul...

    Os olhos lacrimejaram e sem responder, nem olhar a sua volta ou para trás, Nila saiu correndo do salão nobre do colégio. Não ouviu sequer os pais lhe chamarem. Nem a chuva ela sentiu. Queria chegar logo em casa e desaparecer. O beijo não tinha acontecido. Nada tinha sido como ela esperara por dezessete anos. Ela só queria que seu primeiro beijo fosse com seu amado Fábio. Só um beijo de verdade, logicamente com direito ao frio percorrendo a espinha e borboletas no estômago.
    Sentiu as pernas fraquejarem, não sentindo mais seu corpo. Ela sentiu um choque e tudo escureceu a sua volta. Ouvia ao longe vozes a chamando. E gritos de horror.
    -Nila! Nila! Respire...vamos lá garota...respire!
    - Um..dois..três...
    - Vamos lá, Nila!

    Começou a ouvir ao longe o som de sirenes. Sentiu um choque bem fraco percorrer seu corpo e com todas as suas forças abriu os olhos. Mesmo com a água acertando seus olhos, ela conhecia aquele rosto melhor que ninguém... Lábios carnudos, olhos azuis, cabelos negros encaracolados. Fábio estava auxiliando nos primeiros socorros. Quando sua boca veio novamente em direção a dela, Nila entrelaçou os dedos em seus cabelos úmidos e movimentou os lábios. Os olhos azuis arregalaram-se, mas não se desvencilhou do beijo. O hálito quente, os lábios úmidos, o ballet das línguas. As bocas famintas, desejosas, se entregaram ao beijo.

    Foi infinitamente melhor do que Nila imaginara e valeu à pena manter-se fiel a espera daquele beijo. Ela sentiu-se a pessoa mais feliz do mundo. Fábio também sempre desejou beijá-la, talvez sem saber, mas desejava.

    Os braços de Nila caíram, seus olhos fixaram-se em Fábio, exatamente no momento em que seu coração parou novamente. Ela sorria para ele.

    Fábio fixou em choque por alguns segundos. "Como era possível? Como fora um tolo!". Aquele tinha sido o mais cálido beijo de sua vida e por ironia do destino tinha sido o primeiro e o último que receberia de Nila.

    Entre lágrimas, Fábio pousou outro delicado beijo nos lábios frios de Nila. O último.

  2. 2 comentários:

    1. Caraca! O comecinho inocente foi armando bem pro final pancada. Bem construído, envolvente, perdendo aos poucos a inocência, como a protagonista. A esperança dela parece durar um pouco mais que a nossa, que imaginamos já uma despedida sem beijo. E de repente, surpreendendo ela e a nós, um final bem armado com o toque da tragédia. Gostei. (só podia cortar o penúltimo parágrafo)

    2. Vivi disse...

      Sim, surpreendente! Não antevi em nenhum momento a tragédia se insinuando e, ao final, fiquei entorpecida com a consumação trágica do beijo. Primeiro e último para o casal. Esse texto aparentemente inocente encerra muitos significados. Começo e fim. Finitude e eternidade... Como será beijar alguém que morre? Ou viver e também morrer por um beijo? Dá matéria para vários primeiros beijos e outros contos. Ou epitáfios.
      Muito maneiro!

      Beijos
      Vivi