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  1. Vida Nova

    18/02/2010

    Acordou sem saber onde estava, sufocada pela escuridão macia que a cercava. O ar faltava a seus pulmões, mas incrivelmente não fazia diferença. Era só a sensação de sufocamento que lhe deixava desconfortável.
    Piscou várias vezes para seus olhos se acostumarem com a escuridão, enquanto apalpava os limites ao seu redor. O toque da seda, macia e fria, estava por todos os lados, mas sob o tecido algo mais duro não lhe permitia ultrapassar. Sentia-se dentro de um caixão.
    Quando seus olhos começaram a divisar alguns contornos, uma pequena fresta surgiu junto com o rangido de dobradiças. Ela não podia crer, mas estava realmente dentro de um caixão. E um homem alto e moreno a olhava fixamente.
    Sem se falarem, ele lhe estendeu a mão e ajudou-a a sair do caixão. Levantou devagar olhando para os lados, para guardar todas as informações possíveis. O local era iluminado por tochas e velas. As paredes eram de rocha bruta e escorriam pequenos fios de água em alguns pontos.  Uma escada de madeira velha levava a uma porta que estava fechada no alto do cômodo. Alguns baús grandes estavam enfeitados por teias tecidas a muito tempo. E outro caixão estava fechado ao lado do seu.
    Seu? Desde quando imaginava ter um caixão? Enquanto fazia perguntas sobre o que, onde e por quê em sua mente, o homem fechou a tampa do caixão de madeira escura e com cetim vermelho sangue. Sangue? Por que pensar em sangue lhe dava sede?
    Não restava mais nada para olhar a não ser ele: o homem. Ele tinha algo de assustador. Mas era assustadoramente belo. Pálido, com charmosas olheiras levemente fundas, olhos de um azul tão claro que chegava a ser transparente e alto, muito alto, mas sem músculos aparentes.
    Novamente lhe estendeu a mão e como um imã ela se viu entregando e se deixando conduzir. Ele a levou pelas escadas cuidadosamente, pois seus olhos estavam acostumando-se a meia luz ainda. Ela não viu ele abrir a porta, mas ali estava a porta aberta. Saíram em um corredor comprido e totalmente as escuras, mas seus olhos já estavam percebendo a escuridão e podia ver que havia muitos quadros pendurados ali. Já não podia dizer onde era a porta, pois ela se fechara sem fazer barulho e mesclava-se com a parede.
    O corredor terminou em um saguão com duas aberturas que levavam a outros cômodos, uma escadaria larga que levava ao segundo piso e uma porta enorme e de madeira trabalhada que parecia dar na rua.
    Atravessaram, ainda de mãos dadas, o saguão em direção a abertura à direita da porta. Uma sala com alguns candelabros acesos, sofás de veludo verde folha, estantes até o alto recheadas de livros com capa dura e uma escrivaninha de mogno com uma cadeira alta decoravam o ambiente. Um jovem rapaz parecia dormir deitado em um dos sofás. O homem a levou até o outro sofá acomodando-a bem.
    Ele então foi até o rapaz e uma taça de estanho pareceu surgir em sua mão. Segurando um dos braços do rapaz que pendia mole de seu corpo, ele mordeu o pulso até fazê-lo sangrar. Deixou então escorrer o sangue dentro da taça. Com a taça cheia o sangue pareceu estancar-se sozinho e ele estendeu-a como se lhe oferecesse vinho.
    A sede foi maior e a garota tomou todo o conteúdo. Não podia acreditar que estava tomando sangue. Nem mesmo sentiu nojo e o gosto metálico que desceu pela sua garganta aliviou a sede que tinha.
    - Se sente melhor agora – ele falou com voz grave, mas parecendo um sussurro.
    - Sim. Mas o que está acontecendo? Por que estou tomando sangue?
    - Você não pode adivinhar? – sua boca nem parecia mexer, mas um sorriso irônico mostrava que ele estava se divertindo as suas custas.
    - Mas quem... como... como cheguei aqui?
    - Eu te trouxe. Você parecia perdida em cima daquela ponte. Achei que não se importaria se eu te trouxesse.
    Lembrou-se então de tudo. Tinha resolvido se atirar da ponte. Sua vida era uma droga. Perdeu seu namorado para a melhor amiga, foi despedida, despejada e não sabia mais o que fazer para se recuperar. Não tinha outros amigos ou família. Sentia-se realmente perdida e pensou na ponte e no caudaloso rio que corria sobre ela.
    Quando se preparava para pular, alguém a puxou para trás. Uma dor aguda em seu pescoço a fez apagar e quando acordou estava naquele caixão. Quanto tempo fazia isto?
    - Apenas dois dias – ele respondeu, adivinhando seus pensamentos.
    - Mas o que você fez comigo?
    Ele sorriu e mostrou os brancos dentes que reluziam na sala semi-escura. Dois incisivos e caninos ligeiramente proeminentes surgiram contrastando com a boca rubra.
    - Dei o que você queria: uma nova vida. Você agora tem a mim e eu proverei você.
    Sua cabeça então pareceu rodar. Meu Deus! O que lhe esperava?
    - Você só perdeu o sol. De restante só teve ganhos. Não ficará mais doente, terá uma longa vida, morará comigo e eu cuidarei de você. – ele caminhou com passos leves e sentou-se ao seu lado.
    - E não se preocupe com as bobagens que falam a nosso respeito. Alhos, crucifixos e água benta não podem nos atingir. – segurou suas mãos e depositou nelas um beijo.
    Ela ficou alguns segundos em silêncio, enquanto pensava que seu destino lhe tinha sido arrebatado das mãos. Mas incrivelmente sentia-se segura. Sempre quisera isto: segurança. Olhou nos olhos dele e viu ali garantias de uma vida (ou seria morte) boa. Era como um casamento.
    - É um casamento, minha querida e tenho até mesmo um presente para você. – levantou-se a guiando até um closet no saguão de entrada da casa.
    Abriu as duas portas e acendeu uma lâmpada interna. Dentro do armário, amarrados e amordaçados estavam Amanda e Bernardo, sua amiga e seu ex. Os olhos dos dois estavam vidrados e ela podia ouvir seus corações batendo e o sangue sendo bombeado com força pelos seus corpos. O cheiro do medo espalhava-se no ar: mistura de suor e urina.
    Ela não conseguiu se conter, a fome aumentava com a proximidade de sangue fresco. Entregou-se aos novos instintos e renasceu como uma predadora.

  2. 7 comentários:

    1. Vivi disse...

      Muito bom! Não citou a palavra "Vampiro" nenhuma vez posto que está implícito nos acontecimentos e nas metáforas da narrativa. Isso favoreceu e muito o seu texto. Mais uma vez, muito bom! Gostei da maneira sutil e sub-reptícia com que o vampiro a enlaça em seu domínios, da forma como ela se deixa dominar pela proposta de uma vida sanguessuga e do final sanguinário e vingativo.

      Beijos

    2. Boa observadora você, hein Vivi.
      Eu passei trabalho tentando não usar a palavra vampiro, tentando revelar aos poucos a condição de vampiro.
      A idéia era esta mesmo...
      :-)

    3. Cris disse...

      Um show!!!
      Realmente muito bom. Parabéns pela sutileza em não utilizar a palavra vampiro e por deixar fluir num texto leve toda a tragédia. A alegria do Vampiro em conseguir uma companheira e na Vítima o desejo de entrega à nova vida. Quanto ao final...e-s-p-e-t-a-c-u-l-a-r. Ela realmente gostou da doce vingança.
      PS: Ele poderia ter conhecido a minha vampi, quem sabe teriam um romance e a minha personagem fosse um pouquinho menos deprê!! ;-)

      Parabéns!!

      Bjs

    4. Unknown disse...

      Muito vampiresco.
      Os detalhes da descrição, você fica se perguntando se realmente é o que parece, se nada diferente vai acontecer, e mesmo assim me surpreendi com o final.
      Parabéns!

    5. disse...

      O final de fato surpreende. Você conseguiu dar um final inesperado a sua história.
      Parabéns!

    6. Lyani disse...

      Uma descrição impecável que deixa você pensando que é e não é ao mesmo tempo. Adorei a idéia do escuro e o toque macio da seda. Consegui realmente imaginar acordar dentro de um caixão e a sensação de sufocamento, embora amenizado pela maciez e frieza da seda! Realmente impecável! Sem contar o final surpreendente e vingativo rs :)
      Parabéns!
      Bjos,
      Ly

    7. CARA ESTÚPIDO disse...

      Olá, eu votei no seu artigo. Encontrei-o por acaso. Por dificuldade minha, não sei como localizar o seu diHITT. Por favor, se puder me enviar o link dele, terei o prazer de seguir seu blog via o http://dihitt.com.br/KaraYstupido e/ou http://dihitt.com.br/thuliojardim

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