Era a primeira vez que ela voltava lá. Desta vez não era como antes, não havia luz e sombra e não havia as cores das diferentes lombadas a atraindo. Não podia mais ver as pesadas prateleiras de madeira, nem as cadeiras de couro envelhecidas. As páginas de cores alvas e amareladas não estavam mais ali da mesma forma que antes. E o que restava então?
Ela respirou fundo antes de seguir adiante. Tirou os sapatos e sentiu sob os pés a leve aspereza do tapete da entrada. Lembrava das cores dele, marrom e bege com um tom avermelhado. Dois passos e sentiu o frio das tábuas enceradas. Deixou os pés acostumarem-se com a sensação e seguiu em frente. Os braços esticados em direção ao balcão. Alguns tropeços e seus dedos tocaram a madeira macia do balcão. Deixou-os saborear a nova impressão.
Segurando-se nas bordas arredondadas, contornou o balcão, passando para o outro lado. Sabia agora que estava distante apenas três ou quatro passos das prateleiras. Já sentia o aroma de bolor leve das obras antigas que a esperavam. Deixou-se ficar por alguns minutos ali, no balcão, apenas sentindo o cheiro da madeira e do papel.
Alcançar as prateleiras foi como uma espécie de êxtase. Correu os dedos pelas lombadas em uma direção e depois de volta. Sentiu os calombos que separavam um livro do outro. Sensações de papelão e couro misturadas. Encadernações novas e velhas. Cheiro de livro novo combinado com o mofo das antigas páginas. O indicador parou sobre uma grande obra com capa dura de couro, costurada a mão. Puxou devagarzinho e, embalando o livro como um bebê, procurou com a outra mão a cadeira mais próxima.
Na cadeira macia, deixou-se sentar com o livro no colo. As mãos percorrendo a capa e seus relevos. Conseguia lembrar a sensação de ver, mas os outros sentidos compensavam a falta da visão. O som das páginas sendo viradas, o tato do papel e o cheiro das folhas e da capa. A nova vida agora da antiga bibliotecária estava sendo reconstruída com novas sensações e novos hábitos, mas com conhecimento de tempos construído no amor aos livros.
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por Medéia
Medéia,
Que texto lindo! Adorei que utilizou o tema biblioteca, e também a profissão de bibliotecária e ainda por cima com um fundo tão sensível como a perda da visão. Ficou belíssimo, pq mesmo não enxergando ela podia reconhecer seu ambiente com o tato, o olfato, enfim... lindíssimo!
Parabéns!
Ly
Belo texto. Muito sensível e suave...
Parabéns!
Beijo.
Que sacada, Medéia! Sempre tive embutida em mim, a ideia de que quem não lê, não enxerga. Há muitos que passam a vida a olhar, mas na verdade não vêem. Tem olhos para ver, mas não exergam. E ler é ver. O seu texto corrobora essa minha visão, a personagem apresentada não via com os olhos física, mas com os olhos da alma e da imaginação. Sim, bibliotecas têm luz!
Beijocas
tocante, sensivel! Fiquei imaginando a biblioteca e tentando decifrar os sentimentos dela tão delicadamente apresentados... Parabéns! Simplismente lindo... :)
Queridaça,
Lindo! Que sensível. Lendo, senti exatamente o que ela percebia, as emoções transmitidas por uma boa leitura.
Parabéns! Adorei.
Bjs
Medéia,
O texto está ótimo. Abordou o tema por um prisma diferente.
Parabéns!
Rê