(Caham, caham, caham.) [Em voz grossa, grave, embolada, como se com as bochechas cheias o tempo todo.]
Bom... Meus prezados
companheiros.
Eu chamei vocês todos aqui hoje
para esta reunião porque... (Respira fundo) Porque... bem, vocês sabem o
porquê. Mas ninguém nunca quer falar a respeito. Imagino que seja o medo que
bloqueia suas gargantas.
Vocês sabem, eu sou um homem
discreto. Nunca fui de aparecer, de ter nenhum destaque, pra nada. Exceto para
os problemas, é claro. Por isso eu digo: o meu coração já não suporta mais
tanta injustiça. Além da vergonha. Sim. Vergonha. Humilhação. É que, para a
maioria de vocês... ou mesmo para todos vocês que me ouvem agora... parece
estar tudo bem.
Mas vocês sabem que não está tudo
bem. E isso já faz muitos anos. Até perdemos a conta de quanto tempo já se
passou. Meus companheiros, até quando vamos suportar isto? Vocês sabem que ele
não vai nos libertar. Vivemos praticamente como escravos! Jamais vamos ter
liberdade para seguir com nossas vidas desta maneira.
Sim, eu sei. Somos até que
felizes por aqui. Temos nossa bela e confortável casinha na floresta. Temos
nossas noites de cantoria e música. Temos nossas picaretas e nossa mina de
diamantes, que até o momento permanece a salvo da exploração dos caçadores de
fortunas que correm o mundo lá fora.
Mas vocês sabem, caramba, que
essa fortuna que estamos explorando não é nossa!!! Praticamente toda ela vai
para o barão. Sim, o próprio. O barão Rinán Calêros. Nem venham ficar com essa
cara de assustados. Isso deve parar. Ou ele vai continuar nos enganando para
sempre. Ele só está nos enrolando, nos fazendo de idiotas, como vai continuar
fazendo, enquanto não reagirmos.
Não sei quanto aos outros que
foram mais diretamente afetados pela maldição que ele lançou sobre nós. Mas eu
estou já muito... can... sa... sa... sa... sA... SAA ...
SAAAA... Ufs. Ah, obrigado. Pois então, estou já muito cansado desta condição.
Vocês pensam que é fácil? Sim, é muito bonito: cada um de nós tem sua
característica, que o faz único entre nós sete e tudo o mais. Na teoria parece
bonito. Mas não na prática, quando vocês se dão conta das consequências.
Vocês acham que eu me sinto bem
com essa minha maldita doença que ganhei? E nem tanto por mim: mas
principalmente por vocês todos! Lembram-se de quando estraguei toda uma festa com
um de meus espirros? Todos se assustaram, pararam de tocar, cantar e dançar...
e fugiram. Ou ainda quando vocês querem silêncio e me dão bronca quando
acontece mais uma dessas crises explosivas. Sem falar quando o Dunga e o Mestre
se machucaram, sorte que não gravemente, levados pela gigantesca ventania que
eu criei, sem querer.
Nenhum de vocês sofre de uma
doença... ou maldição, com impactos tão terríveis para os que os rodeiam quanto
a minha. Mas claro, alguns de vocês enfrentam dificuldades terríveis para vocês
mesmos.
Soneca tem a pior de todas, no
meu entender. Vocês lembram de como ele era ativo, esportista, não é mesmo?
Bom, talvez vocês nem se lembrem mais disso mesmo. Já faz tantos anos... Mas vejam
agora o estado de nosso pobre amigo. Imaginem a qualidade de vida de uma pessoa
com tantos potenciais, tantos talentos... mas que mal consegue se manter
acordada!... Aliás, obviamente ele nem está mais me ouvindo a esta altura do
campeonato... Não, não, não precisam acordá-lo. Depois eu repito pra ele.
Sem falar e literalmente sem
falar, é claro, de nosso encantado amigo Dun...ga... ga... aaa... aAA...
AAAAA... AAAAAA... Ufsss. Ah, obrigado. Bem, eu falava sobre o Dunga. Não há
muito o que dizer no caso dele. Sim, ele segue como provavelmente o mais
carismático e feliz de todos nós, apesar de sua condição. Mas ele jamais
poderia por exemplo, estar aqui no meu lugar, diante de vocês, dizendo o que eu
digo agora. Obviamente, pois ele não fala mais. Apesar de que, em outros
tempos, tinha uma das vozes mais bonitas do reino. Ao menos... o seu bom
coração não permite que a sua alma seja enevoada por este triste destino.
O que dizer de Zangado? Será que,
se eu lembrar a vocês todos, como ele era de bem com a vida... tanto quanto
Dunga, Feliz e Dengoso... isso seria suficiente para entender o seu drama? Ok,
ele pode não estar nem aí para a própria situação dele hoje. Mas faz parte do
temperamento que ele ganhou. Quem aqui em sã consciência gostaria de viver a
vida inteira com a cara amarrada como nosso amigo? Isso por acaso seria
felicidade, objetivo normalmente almejado por todo ser humano (inclusive os
anões, é claro), como sempre nos ensinou o bom e sábio Mestre?
Somos amigos, sim, nos tornamos
bons amigos, depois de tanto tempo juntos. Mas os laços de amizade não devem ser
construídos com base na força, na obrigação. E sim na liberdade, no coração
livre e desimpedido de cada um. Se é para continuarmos juntos, que seja porque
assim o desejamos, e jamais porque outra pessoa nos forçou a essa situação.
Desse modo, pra concluir, eu
espero que, da próxima vez em que cantarmos...
“Eu vou, eu vou”, não seja
Pra casa nem pro trabalho,
pelamor. Oh, não.
Mas seja pra lutar por justiça e
liberdade.
Pra todos sem exceção. Oh não.
Não precisamos es...perar
princesa ou príncipe
Que venha resolver nossos
problemas, a... a... a... A... AAA
AAAAA TCHIIIIIIIIIIIIIIMMMMM!!!!!!
[CATAPLOF, TUM, PÁM, CRÁS, PIMBA]
Oh... Desculpem.
Não pude ir dormir sem ler teu texto.
O comentário vai ser maior depois, mas tenho que dizer algo antes de ir: você adora um discurso, né?
eh eh eh
Maurício ideológico e inflamado!
Eu ri, como sempre... ;)
O Maurício é expert em escrever discursos. E não se esquece de colocar as rubricas. Muito bom!Em nenhum momento a voz do escritor prepondera sobre a do personagem. Aliás, bem sacado dar voz a um anão que vive espirrando. Geralmente, o foco é sempre em seu espirro em detrimento de suas ideias e habilidades. Daí o bem dito desabafo de sua condição.
Achei linda a mensagem final. Por fim, peguei-me comovida com a versão sugerida da canção tema dos anões. Gostei!
Bjs
Achei interessante a ideia de que a personalidade de cada anão fosse, na verdade, uma maldição. E que eles são explorados (sempre achei estranho eles irem para as minas com várias pedras preciosas, mas usarem roupas remendadas...).
Gosto dessa maneira que você entra nas histórias dos outros e bagunça tudo! Acho difícil escrever humor e diálogos, acho q vc faz isso mto bem. Você já leu Terry Pratchett? =)
Rs, fico feliz com as reações de vocês, prezadíssimas companheiras de jornada...
De fato, gostei de escrever discursos. É uma maneira de inserir o leitor na narrativa de uma maneira que me parece muito forte. É uma espécie de "diálogo" que se estabelece diretamente do personagem para com o leitor! E sem necessidade de travessões!
Mas calma lá, não sou ainda nenhum especialista no gênero, só produzi dois até agora... :)
Pô, Medéia, se for pra produzir textos ideológicos por justiça e paz, realmente me orgulho por produzi-los! hehe [E fiquei curioso com o que mais você pensou, não deixe de contar depois, heim?]
E sigo feliz de continuar te inspirando boas risadas... :) Posso considerar essa uma de minhas missões na Terra?
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Só não entendi o que você quis dizer com as tais rubricas, Vivi... Isso não seria uma espécie de assinatura, visto? Ou seria uma referência às marcas de narração, como as onomatopeias ou o modo em que se deve imaginar a fala do protagonista?
Sinto-me especialmente feliz que a narrativa tenha conseguido te fazer viajar para esse outro cenário, já que vc disse que a "voz do personagem" prevaleceu!
Fora as suas importantes referências ao fato de o Anão ser sempre um personagem secundário que nunca expressa suas ideias, a mensagem final (refere-se àquela sobre a amizade mesmo?) e também sobre a canção-tema! São mesmo pontos aos quais eu dou muita, muita importância. :) Até eu me emocionei sozinho aqui escrevendo e relendo depois...
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Oi, Débs! Vou ter mesmo que conhecer esse tal de Terry... Obrigado pela indicação. Não conhecia mesmo. Mas realmente, acho que estou me encontrando ao fazer essas paródias ou adaptações. Eu me divirto muito com elas!
Olha, mas sobre o lance de irem buscar pedras preciosas e viverem com roupas remendadas, nem eu tinha percebido ainda! ;) Boa observação.
Mas o fato é que acho muito bacana a gente espiar nas histórias clássicas que aí estão flutuando à nossa volta e fazer perguntas críticas: "Mas por que isso? E aquilo? Ah... será que...?"
Na verdade, acho que esse tipo de questionamento é o que todo escritor faz diante de qualquer fato da vida. Mas no meu caso, acabei explorando aqui um conto clássico. :)
Obrigado MESMO pelo retorno, meninas! Pensei até em oferecer este continho doido como proposta de contador de histórias em alguma livraria ou biblioteca... Será que rola? hehe
Bj,
Maurício
Realmente gostei muito do texto. Como se diz? Coube certinho!
Eu sinceramente admiro sua capacidade de criar um contexto a partir do existente. É aquele milissegundo de divagação quando a gente assiste um filme (ou lê uma obra, etc.) e se pergunta o porque do contexto. Mas aí, com o andamento da coisa a gente segue em frente e descarta a idéia.
Você foi (é) astuto o bastante para PARAR naquele ponto, e de lá construir toda uma linha de pensamento paralela à original. Há quem diga que quem faz isso é preguiçoso, que não tem imaginação para criar sua própria história e blá, blá, blá... BESTEIRA!
Mandou bem no texto. Gostei de verdade.