Não consigo mais suportar o
cheiro de catchup. Ou tomate. E o pior é que eu adorava isso. Não, não é nem
questão de gosto, sabor, nem nojo. É medo mesmo. Pavor. Esse odor só me lembra
morte. Da mais cruel e violenta.
É claro, você deve imaginar os
problemas que isso me causa agora. Como devem estranhar e achar ridícula essa
minha peculiaridade. Por exemplo, nem consigo mais passar em lanchonetes, que
cuidadosamente abarrotam de catchup todas as mesas para seus vorazes clientes
mandarem ver em seus hambúrgueres e hot-dogs. Isso sem falar nas casas da antes
deliciosa culinária italiana, cheia de espaguetes, nhoques, pizzas e outras
massas... com muito molho de tomate!
Nem mesmo as ruas são porto
seguro para mim. Pois cada esquina oculta uma barraquinha de hot-dog, fritas ou
pastel. Sempre com o maldito catchup à disposição. Merda! E eu nunca tinha
reparado que meu olfato podia ser tão apurado.
Você talvez ache bobo esse meu
medo, que eu esteja levando muito a sério a semelhança do catchup com o sangue.
Afinal, brinca-se por aí que catchup é usado para simular sangue em filmes e
eventos de terror. Não. Permita-me contar minha história, e vamos ver se você
ainda vai achar isso um exagero.
Tudo começou com um telefonema de
minha namorada, Aninha. Ana Paula Gouveia. Ela era responsável pelo setor de
controle de qualidade numa fábrica de temperos. Aninha me telefonou numa
madrugada, num feriado prolongado do Dia de Finados, de quinta para sexta-feira.
Ela me pediu para ir urgente até a fábrica para encontrá-la, porque ela
precisava de ajuda.
Eu pedi esclarecimentos, já que
era uma maluquice eu ir assim de repente pro local de trabalho dela, ainda por
cima de madrugada. Já era estranho na verdade que minha namorada estivesse lá
no feriado, normalmente nesses dias ela não ia ao trabalho e a fábrica dava uma
folga aos funcionários.
De fato, ela tinha me avisado
antes que não poderia me ver no dia que tinha acabado de passar, por questões a
resolver na fábrica. Na verdade, nesse dia então, mal pudemos conversar
direito. Mas não imaginava que Aninha ficaria até a madrugada, e muito menos
que me chamaria para ir lá também!
De todo modo, ela não quis me
explicar por telefone o que estava acontecendo e por que exatamente ela
precisava de minha ajuda. E pior, sua voz estava estranha. Parecia bastante
animada, empolgada com alguma coisa. Mas não parecia um entusiasmo saudável.
Tinha um tom doentio, fanático. O que estaria acontecendo?
Fiquei muito preocupado, claro, O
jeito foi me trocar rapidamente, tirar o carro da garagem e dirigir até o
endereço indicado. Seria a primeira vez que eu iria pra lá. Naturalmente, nunca
tive antes motivos para visitar a fábrica, que fica junto a uma rodovia no
limite oeste da cidade.
Atravessei a cidade vazia,
mergulhada na madrugada, enquanto tinha a voz eletrônica do GPS
para me orientar e fazer companhia. Não me parecia muito agradável dirigir
nesse horário, ainda mais que muitas ruas do percurso não eram bem iluminadas.
Na verdade, essa voz feminina do GPS , que aparentemente
se esforçava por parecer amável, apesar de artificial, aos poucos começou a me
dar nos nervos. Tudo parecia adotar um tom melancólico e pavoroso desde então. Tudo
parecia ser motivo para medo, inclusive os moradores de rua, uns deles
murmurando algo ininteligível diante da minha passagem com meu carro.
A voz eletrônica, com suas ordens
“Vire à direita depois de 200 metros” e “Siga em frente por um quilômetro”
parecia me mandar para uma câmara de gás. A voz artificial, aos poucos, passou
a se parecer muito com a voz de Aninha que eu tinha ouvido pelo telefone antes
de sair de casa. Aquele tom de voz sorridente e doentio. Eu, no entanto, não
podia levar isso tão a sério. Devia ser apenas imaginação demais de minha
parte, eu pensava.
Quando estava já na rodovia que
levava à fábrica, aconteceu o primeiro incidente realmente perigoso. Tinha um
boi na pista, bem à minha frente, avançando devagar na minha direção. Mas eu
estava tão distraído e assustado que só fui reparar na última hora. Também
achei que fosse impressão minha na ocasião, considerando a bizarrice disso, mas
parecia que o boi estava com olhos vermelhos, brilhando.
Fiz o possível para desviar, considerando
que meus reflexos não estavam em sua melhor forma. Virei rápido para a
esquerda, torcendo para que não viesse nenhum veículo do outro lado, nessa
estreita via de sentido duplo. Me imaginei batendo o carro com tudo na cerca de
segurança que limitava os espaços laterais da via e indo parar no meio das
ferragens. Derrapei, ouvi e senti a lataria amassar e zumbir em contato com a
cerca metálica. Meu carro deu uma boa estragada na lateral, mas ao menos foi só
isso.
Ao menos eu estava chegando.
O que nada podia me preparar era
ver o que vi mais adiante junto da estrada, já nos arredores da fábrica.
Um corpo. Não dava pra ver bem,
mas parecia uma mulher. Céus, já pensei no pior, seria Aninha? Parei o carro,
desci do veículo, e fui cuidadosamente me aproximando. O corpo estava cheio de
sangue. Aliás, na verdade, era o que eu pensava. O que estava ali em profusão
era mesmo catchup, o cheiro forte era inconfundível. Seria mesmo um exagero
tanto sangue espalhado pelo corpo inteiro. Mesmo assim, por que o catchup?
O fato é que quem estava ali era
minha irmã, Dani, claramente morta! De olhos abertos, vermelhos como os do boi
que quase me matou. Com fratura exposta em um dos braços. Expressão do rosto
contorcida permanentemente de dor e pavor. E largada no chão com muitos
ferimentos, como se tivesse sido arremessada e caído ali de qualquer jeito.
Além de vários cortes pelo corpo, devia ter ossos quebrados.
Minha irmãzinha...! Deus do Céu!
Fiquei desesperado. Peguei na mão dela, o rosto todo machucado e com aquela
expressão horrível... Tentei ouvir sua respiração, coração ou pulso, não tinha
nada. Era só um corpo. Mas era minha irmã! O que ela estaria fazendo nesse
lugar maldito? Fiquei sem forças pra mais nada. Apenas me larguei ao lado dela,
chorando, soluçando como uma criança. Gritando.
Ao me recuperar um pouco, resolvi
telefonar para a Aninha. Deus do Céu. O que estaria acontecendo afinal? Sem
conseguir falar direito, balbuciei sobre a minha irmã na estrada, perto da
fábrica. Minha namorada demonstrou surpresa e horror ante à minha notícia. E
falou algo como “Então pegaram ela!”. Eu perguntei: “Quem? Quem pegou ela?”
Novamente, Aninha não quis explicar detalhes. E voltou a dizer: “Por favor, vem
aqui! Vem logo! Me ajuda! Por favor!!! Tô desesperada!”
Eu tentei explicar que não tinha
condições de ir, que precisava ver o que fazer com minha irmã. Que eu precisava
chamar a polícia. Ela respondeu brava, dizendo que não chamasse a polícia, que
ela precisava de mim lá com ela. Nós discutimos. Questionei: “Afinal,
desembucha, caralho, o que você tá aprontando aí? O que tá havendo? Você não
entendeu? Eu falei que a minha irmã tá aqui! MORTA!” Aninha respondeu de
maneira convincente: “Então vem aqui URGENTE se não quiser me ver morta também,
e por culpa sua!!!”
Desligamos. Ainda em estado de
choque, voltei a observar minha irmã. Baixei suas pálpebras e fechei seus olhos,
de modo que eu não precisasse mais encarar aqueles olhos vermelhos. Eu não
sabia mais o que fazer.
Telefonei para a polícia, falei
sobre minha irmã, dei o endereço da fábrica e falei que havia algo aparentemente
perigoso lá, mas que minha namorada não teria conseguido explicar o que era. O
atendente ao telefone me disse para não ir à fábrica então. Mas eu voltei ao
carro e segui em frente. A polícia devia demorar pra chegar mesmo neste fim de
mundo. Fiquei na dúvida se eu deveria levar o corpo de minha irmã comigo. Mas
mal tinha coragem para carregá-lo, então, pesaroso, deixei onde o encontrei.
Tremendo, cheguei enfim à
fábrica. Lá havia um porteiro na guarita. Ele parecia meio grogue, mas
acordado. Falei que tinha vindo a pedido da Ana Paula Gouveia. Ele resmungou
alguma coisa e me deixou passar. Deixei o carro no estacionamento e fui até o
bloco 3, seção B, onde ela tinha me orientado procurá-la. Voltei ao porteiro,
que me explicou, com muita má vontade, onde era esse setor.
Era uma área de produção de
catchup. Chegando lá, ao sentir o cheiro forte de muito catchup, a horrenda lembrança
de minha irmã quebrada, abandonada e banhada no tempero voltou a ficar mais
forte. E hesitei antes de avançar pelo corredor interno, enfraquecido e
debilitado. Mas tomei coragem e avancei. Precisava resolver logo essa situação.
Ao entrar de vez no referido
setor, entre tubos metálicos e painéis com ponteiros, não pude ver muito, pois
o lugar não estava bem iluminado. Havia diferentes tanques vermelhos de
catchup. E ouvia vozes em murmúrios de sofrimento dentro dos contêineres
metálicos. Deus. Não eram vozes quaisquer. Eu as conhecia. Fui procurá-los. Eram
meus pais. E o irmãozinho da Ana também. E a mãe dela. Todos banhados naquele
odioso líquido vermelho. Em três tanques diferentes. E o cheiro de tomate e
catchup impregnava esse ambiente de pesadelo. Deus, que loucura era essa?
Meus pais, ambos mergulhados no
mesmo tanque, só com a cabeça, pescoço (com cortes feios no formato de algum
símbolo) e parte do peito para fora, estavam em estado catatônico. Mal
conseguiam falar. Meu pai, na verdade, não reagia mais. Minha mãe e os outros, todos amarrados às bordas do poço, se falavam, era algo ininteligível. Eu gritava: “Ana, cadê
você? O que nossa família está fazendo aqui nesta loucura de banhos de
catchup?”
Não demorou muito para ela
aparecer, vinda do outro lado da seção fabril. Linda, ela sorria. O mesmo
sorriso doentio que se podia esperar pelo seu tom de voz de quando me telefonou
em casa.
- Oi, meu bem. Você demorou – ela
disse.
- Que loucura é essa, Ana!?? –
explodi com ela. Primeiro você diz que iria passar o feriado trabalhando na
fábrica. Me tira da cama de madrugada. Só pra ver minha família aqui tomando
banho no seu maldito catchup? Você enlouqueceu mesmo de vez?
- Calma, querido. Eu precisava
reunir as pessoas que você mais amava. E as minhas também. Temos uma conexão
tão forte, que precisava ser você... e eles também. Você deve se sentir é
orgulhoso, porque vai contribuir para o processo de um jeito que jamais
imaginou.
- Processo? Que processo? E que
símbolos são esses que estão aqui cortados no pescoço do meu pai? Eu poderia
entender que você gostasse de umas coisas esotéricas, mas não imaginava nunca
que você ia chegar a um extremo desse! Você tá delirando, Ana! Por favor,
você...
- Só porque você não conhece certas
leis... não é por isso que não existam. Você sabe bem que não me curvo ao que
esteja além da ciência – respondeu ela, professoral.
- Ciência? Ah, vai te danar! – Eu
dizia isso entre lágrimas de tristeza e ódio da minha... ex-namorada. – E a
Dani? Foi você que fez aquilo com ela?
- Sua irmã? Ela não aguentou te
esperar para completar a fórmula... Infelizmente, ela fugiu e foi desperdiçada.
- “Desperdiçada”? Como você pôde
ficar tão fria? Você não era assim, Ana. Que pessoa você se tornou? E aquele papo
de que você precisava de mim? Como você pode me enganar tanto assim?
- Eu te amo, querido. Mas nosso
amor, essa força tão poderosa, deve ser aproveitada por um bem maior. Por isso
te chamei aqui. Neste ambiente cheio do precioso líquido vermelho. O ideal
seria sangue, mas eu precisava aproveitar este ambiente, que é de fácil acesso
para mim mesmo. Este cenário fortalece o processo. Seria um desperdício não aproveitá-lo.
Para Ele, a imagem conta muito. Mas, para você... a imagem logo não contará
mais. Desculpe, você vai ficar chateado comigo, mas pense que é para um bem
maior. Na verdade, você deve se sentir orgulhoso por contribuir para este
momento.
Enquanto ela falava aquelas
palavras absurdas, de meu nariz começou a escorrer um líquido viscoso.
Vermelho, como pude comprovar, levando incrédulo as mãos ao rosto. Não, não era
sangue. Lá de minhas narinas, pude sentir o cheiro de catchup mais forte como
jamais tinha sentido até esse momento.
Não parou por aí. O mesmo líquido
passou a escorrer de minha boca. Como se eu expelisse todo o catchup e molho de
tomate que já tinha consumido até esse momento na vida. Sem chance de conter o
fluxo.
Para terminar, minha visão
começou a ficar tomada pelo vermelho. Tudo o que eu enxergava adquiria tons
rubros. E, cada vez mais, o que eu via perdia definição e contraste. Depois,
não via mais nada. Eu podia começar a ouvir sirenes da polícia se aproximando.
Mas só via uma permanente vermelhidão borrada daí em diante. E o cheiro letal e
forte de muito catchup naquele ambiente pavoroso.
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