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  1. por Medéia

    “Quase mais antiga que a humanidade, uma velha lenda dizia que os Deuses separaram em dois. Em sua testa ela está e ele a reconhecerá”.

    Pesado e quente era o clima em Assuan. Nefer-Hat-Aru, sonolenta, abanava-se deitada sob uma gigantesca sombra artificial feita de papiro e bambus. Algumas de suas escravas núbias, reluzentes sob o escaldante sol, portavam abanadores feitos de penas de aves que realizavam um movimento ondulatório cadenciado, criando uma pequena brisa para sua ama.

    Ao lado o Nilo corria, como lava quente descendo a encosta de um vulcão, cintilante e sereno. Pequenos barcos levavam comerciantes enrolados em mantos alvos, que refletiam o sol como um espelho. As mulheres que por ali circulavam, exibiam o busto nu queimado pelo sol, os cabelos trançados ou escondidos por perucas grossas, saiotes do mais puro linho e pouca maquiagem no rosto devido ao sol quente que castigava a tão amada Khemi.

    Hat-Aru era muito jovem, tendo saído de sua primeira lua vermelha há pouco tempo, e estava completamente entediada de sua jovem vida de nobre. Tuina sua mais antiga escrava, sua segunda mãe e confidente, voltava com seu suco de damascos e lhe sorria.

    - Ainda aborrecida com este tempo quente, Hat-Aru? Posso distraí-la contando histórias de minha terra.

    Só se for a lenda dos amantes, Tuina. – disse animada a garota.

    - Novamente ama? Você realmente gosta desta história.

    - Fico pensando se algum dia encontrarei aquele que amo. Se o sinal em sua testa me mostrará o amor e acabará com meu enfado.

    Neste momento, um jovem escravo correndo, aproximou-se da jovem ama.

    - Senhora, seu pai, meu amo, acaba de aportar com seu barco.

    A garota, esquecendo as boas maneiras que uma nobre deveria ter, saltou e correu em direção ao porto, fazendo com que suas escravas a seguissem. Apenas Tuina, devido a idade, manteve seu ritmo lento até o porto.
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    O barco de Merkeset não era grandioso, mas era tido como o mais rápido do reino. O Senhor Merkeset era ainda jovem e belo, de porte alto e vigoroso, pele adamascada, olhos da cor da folha do papiro. Levava no peito um belo colar de lápis-lazuli dado por sua falecida esposa Tyi. Vestia um manto branco que o protegia do sol escaldante. Estava dando ordens para descarregar os novos escravos eunucos que comprara quando ouviu sua filha Hat-Aru lhe chamando. Correndo ela se aproximou do barco. Realmente era difícil ensinar boas maneiras àquela garota, mas ele a amava muito por isso permitia seus disparates.

    Hat-Aru subiu ao barco correndo e antes de chegar ao seu pai e abraçá-lo esbarrou com o grupo de novos escravos eunucos que Merkeset trazia. Corria tanto que o impacto com um dos escravos quase lhe derrubou. Se não fosse o próprio escravo segurá-la, Hat-Aru teria caído ao chão, ou pior, poderia ter sido derrubada pela amurada.

    Um grande e forte servo de seu pai já levantava o chicote para bater no jovem escravo por se atrever a pôr as mãos em sua ama, quando Merkeset o impediu com um grito.

    Hat-Aru ainda tonta pelo impacto olhou para cima e encontrou um belo e jovem rosto masculino a olhando preocupado. Nariz reto e boca cheia, queixo firme e liso, olhos amendoados e amarelos e um pequeno sinal tatuado na testa. Quando seus olhos se encontraram os dois pareciam estar em outro mundo. Hat-Aru só percebeu seu pai lhe falando quando ele a tocou.

    - Você está bem, minha filha? - um preocupado Merkeset a segurava agora.

    - Sim, meu pai, eu não devia ter corrido, mas sua chegada me alegrou. Só fiquei um pouco tonta com a batida. – aninhando-se nos braços de seu pai, a garota ainda olhava o jovem escravo.

    - Como é seu nome, jovem escravo? – perguntou Merkeset ao rapaz.

    - Nimmur, senhor. E peço desculpas por tocar sua filha.

    - Não se preocupe rapaz, você na verdade a salvou de cair do barco. – Encarando Hat-Aru, perguntou então: - O que acha de ganhar como presente este eunuco, minha filha?

    O olhar de surpresa da garota não se devia ao presente que o pai lhe dava, estava acostumada com eles, mas sim ao fato de Nimmur ser eunuco. Como podia não ter as feições andróginas dos eunucos? Como podia exalar masculinidade quando não a possuía?

    Apenas Tuina, que havia chegado depois em seu passo lento, pode ver nos olhos dos dois jovens o que nem mesmo eles ainda queriam cogitar: o desejo. E isto a preocupava muito.
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    Mais tarde, a sós em seu quarto com Tuina lhe despindo para sua ablução, Hat-Aru ainda não conseguia parar de pensar em Nimmur que estava postado do lado de fora de seus aposentos como guardião.

    Distraidamente pergunta a Tuina: - O que significa aquela tatuagem na testa de Nimmur?
    A escrava que já tinha um olhar preocupado e pensativo olhou sua amada senhora com pena e horror. Mas por não conseguir mentir para ela lhe disse: - Não há nenhuma tatuagem sobre a testa de Nimmur, senhora.

    - Como não? É como um pássaro e se encontra bem no meio... Não! – A verdade havia lhe fulminado como um raio. – Não pode ser, Tuina. Você está brincando comigo. A lenda não era real, me diga que não. Ele não pode estar destinado a mim.

    - Infelizmente, querida, eu acredito que sim.

    - Mas se assim for, ele também deve ver a marca em minha testa.

    - Provavelmente senhora.

    - Chame Nimmur aqui, Tuina. Quero que ele me diga se vê a marca.

    Enquanto Hat-Aru se cobria com um manto finíssimo que apenas lhe deixava ainda mais bela, Tuina ia até a porta dos aposentos chamar Nimmur. O rapaz entrou de cabeça e olhos baixos, mas com um porte altivo, como um guerreiro.

    - Olhe para mim, escravo. – disse Hat-Aru. – E me diga o que vê em minha testa.

    O rapaz confuso levantou os olhos para sua nova e bela ama. Um rosto lindo era o que ele via, e no meio de sua testa um pássaro pintado.

    - Um pássaro, senhora. – abaixou os olhos novamente.

    Choque era o que se via no olhar da garota. E Tuina, que a tudo assistia, já sabendo do que estava por vir, deixou correr lágrimas em seus olhos pelo amor impossível de sua senhora.

    - Saiam os dois daqui agora mesmo. – gritou Hat-Aru. – Preciso ficar só.

    Os escravos saíram enquanto Hat-Aru pensava. Precisava do consolo da Grande Ísis. Ela não podia amar um escravo, muito menos um eunuco. Como isto era possível? Só podia ser uma grande brincadeira de Seth, o deus maligno.

    Nimmur saiu do quarto de Hat-Aru com Tuina e ao parar do lado de fora, a velha escrava o pegou pelo braço e o levou a ala dos servos. Chamou outro eunuco para guardar a porta de sua ama e continuou levanto o jovem pelo braço até seus próprios aposentos. Lá ela lhe contou a lenda, e porque somente ele via a marca na testa de Hat-Aru, assim como ela a via nele.

    Enquanto Nimmur tentava entender seus sentimentos, a senhora Nefer-Hat-Aru pulava a janela de seu quarto e se dirigia ao pequeno templo dedicado à Ísis, dentro de seu palácio, próximo ao lago artificial criado para o banho dos senhores da casa.

    Pedras brancas se erguiam majestosas no templo de linhas simples mas virtuosas. Lá dentro uma chama se mantinha acesa para iluminar a estátua da Deusa e Mãe Ísis. Hat-Aru aproximou-se e ajoelhada pediu a Deusa que a auxiliasse, iluminasse seu caminho e lhe mostrasse o que devia fazer. Assim, a primeira hora a encontrou, exausta de orar durante a noite, dormindo sobre os degraus que levavam a imagem.

    Tuina passou a noite conversando com Nimmur, contando-lhe sobre sua Hat-Aru e ouvindo a história do rapaz. E descobriu algo que poderia chocar o seu Senhor Merkeset, e fazê-lo mandar açoitar o rapaz. Prometeu não contar a ninguém, nem mesmo a sua senhora, para evitar que ela tivesse esperanças no seu amor. Pediu a ele que não encorajasse sua senhora e que se mantivesse distante. Foi ao quarto de Hat-Aru para vê-la e não a encontrou.

    Nimmur saiu da ala dos escravos e andando foi parar justamente em frente ao templo. Atraído por uma força maior que ele, adentrou as colunas e viu a jovem dormindo sobre os degraus. Era uma imagem etérea e linda. Sabia que devia ir embora, mas não conseguia se mexer. Pareceram horas, mas talvez fossem minutos. Hat-Aru foi acordada pelo olhar de Nimmur. E ao virar para ele e ver transbordar amor em seus olhos, soube o que devia fazer. Correu para seus braços e ofereceu seus lábios para um beijo. Nimmur a esperara toda vida. Abraçou-a e beijou-a. Fundidos neste abraço, senhora e escravo viveram sua paixão impossível. Hat-Aru teve instantes de surpresa ao descobrir o segredo de Nimmur: ele não era um eunuco.

    Entre juras de amor e intimidades o casal passou ali a noite. E adormeceram cansados da paixão que os consumiu. Quando a terceira hora chegou, as sacerdotisas vieram ao templo e descobriram os amantes abraçados, dormindo no piso frio, cobertos apenas pelo manto fino de Hat-Aru. Seus gritos atraíram os guardas que levaram Nimmur imediatamente à presença de Merkeset. Enquanto as sacerdotisas carregavam Hat-Aru para seu quarto. Nem mesmo Tuina pode entrar no quarto de sua senhora para consolá-la.

    Merkeset magoado e desolado culpava o rapaz pelo ocorrido. Descobrir que o rapaz não era eunuco e que se aproveitara de sua filha o deixara com raiva. Mandou amarrarem Nimmur com braços e pernas abertos no átrio e cortar o que já deveria ter sido cortado dele. Deixando-o então para morrer esvaindo-se em sangue. Não quis falar com sua filha e ordenou que a mantivessem trancada no quarto durante todo aquele dia, sem comida ou bebida. Quem agora iria querer sua princesa, sem o selo da sua virgindade, com a marca de ter se deitado com um escravo?

    Em seu quarto Hat-Aru chorava copiosamente e chamava o nome de Nimmur. Ela mais sentiu do que ouviu o grito de seu amado. E percebeu a vida se esvaindo do corpo dele. Seus soluços sacudiam seu frágil corpo e cortaram o coração de Tuina, que não podia entrar em seus aposentos.

    E assim passou-se um dia...

    Quando permitiram Tuina entrar no quarto de sua ama, para lavá-la, alimentá-la e confortá-la, o dia nascia novamente, e a velha escrava abriu a porta apreensiva, pois parara de ouvir seus soluços há muito tempo. Para sua surpresa, Hat-Aru não se encontrava em lugar algum. Sobre a cama apenas um pequeno pássaro branco parecia fitá-la. Ao se mexer, Tuina espantou o pássaro que voou pela janela. Instintivamente, Tuina foi até a janela. Lá embaixo, guardas garantiam que sua ama não fugira por ali novamente; lá em cima, recortado contra as nuvens cinzas do dia que nascia nublado, o pássaro que voara, abria suas asas livres. Um outro pássaro, maior e escuro vindo não se sabe de onde, juntou-se ao pequeno pássaro e juntos sumiram no horizonte.

    Não foi surpresa alguma para Tuina descobrir que o corpo do jovem Nimmur não estava mais amarrado no átrio. Apenas seu sangue permanecia manchando o chão claro. Por muitos anos, Merseket mandou procurar o escravo fugido e sua filha, mas sem sucesso algum.

    Esta era mais uma lenda para Tuina contar à próxima senhora que fosse servir, pois Nefer-Hat-Aru e Nimmur com certeza estavam vivendo no outro mundo o seu único e verdadeiro amor.

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  2. 7 comentários:

    1. Show de bola! Gostei bastante, tanto pela temática egípcia (particularmente gosto bastante da antiguidade, rende sempre boas histórias – especialmente quando se trata de lendas) como pela história e o estilo. Envolvente e bem visual.

    2. Vivi disse...

      Medéia,
      Que beleza de história. Que combustão criativa. A história está bem delineada. Sua contextura leve torna-se agradável a leitura e não diminui a riqueza de sua abordagem. Eu apreciei demais.

    3. Cris disse...

      Medéia, parabéns.
      Seu texto ficou lindo.

    4. Anônimo disse...

      Oiê,
      Parabéns pelo texto!!!
      Muito legal
      Beijoooo

    5. lili disse...

      Parabéns Medéia!!

      Lindo demais, vc me fez chorar menina!!
      Continue assim....

      Bjs
      Lili

    6. Agradeço a vocês todos que fizeram seus comentários ao meu texto.
      Adorei os comentários, pois só me incentivaram ainda mais a escrever.
      Beijos

    7. disse...

      Parabéns, você conseguiu nos levar para outra época. Bela descrição do cenário que envolve a trama, além de ser uma linda história de amor Continue assim!!!