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  1. Uma Vida Normal

    05/03/2009

    por Medéia
    Uma vida normal. Nem agitada demais, nem solitária demais. Assim ele vivia, cercado pela família, mulher e dois filhos.

    Despertava de manhã com o rádio-relógio e recebia um carinho da mulher antes de sair da cama. Depois de escovar os dentes, ligava a cafeteira enquanto fazia um sanduíche. O aroma do café lhe fazia despertar mais. Não via os filhos antes de sair porque eles ainda dormiam, mas sabia que estavam lá. O caminho para o trabalho era feito em silêncio, quebrado apenas pelo rádio do carro e as notícias da madrugada.

    O trabalho também era normal. Um escritório qualquer com papeladas, computadores, telefones e muita confusão diária. Não havia pausa nem mesmo no almoço, que muitas vezes era um sanduíche entre os papéis e o teclado.

    Chegar em casa era bom e normal. Uma mulher cheirosa, uma casa limpa, crianças felizes e ansiosas que lhe esperavam para contar as aventuras do dia. Um jantar normal, televisão e as notícias do dia. Às vezes um futebol, outras vezes um filme, mas na maioria das vezes novelas. E dormir ao lado de sua carinhosa mulher para no outro dia começar tudo novamente.

    Quando tudo aconteceu, ele não lembra. O início foi devagar, pequenas coisas, algumas novas manias. Nada muito anormal, mas que minava aos poucos a sanidade conseguida.

    O que desencadeou também não sabia. Talvez a absoluta normalidade da sua vida, sem nem uma novidade realmente nova, uma rotina sem fim das mesmas coisas. Mas também já podia estar lá, dentro dele, toda a sua vida.

    O que ele sabia é que aos poucos sua rotina foi mudando. Um dia chegar atrasado ao serviço, no outro não voltar no horário para casa. E outras atitudes que todos começaram a perceber e a estranhar.

    E então coisas mais absurdas, consideradas não normais. Ir de pijama ao trabalho, acordar de madrugada para cortar grama, não pentear os cabelos por uma semana. Sua mulher já não era mais carinhosa, seus filhos tinham o medo no olhar, e seus colegas e vizinhos cochichavam em suas costas sobre a dita loucura que se instalara em sua mente.

    Mas seria mesmo loucura? Ou só algo fora do padrão, fora do normal? Ele não sabia e continua sem saber, porque ninguém queria nem quer entender os seus motivos.

    Primeiro perdeu o emprego, então perdeu os amigos e o respeito da família e agora perdeu sua liberdade. Ele hoje vive entre quatro paredes brancas e um colchão apenas. Seus dias são da forma que ele quiser que sejam, absolutamente fora do arquétipo que construíram para sua vida. E ele dorme. Mas quem sabe um dia desperte novamente o homem normal, aquele que a sociedade aceita, que a família aceita. Mas como será então este dia?

    O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia. Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.” (De Miguel Sousa Tavares in Não te deixarei morrer, David Crockett )

  2. 5 comentários:

    1. Anônimo disse...

      O grande problema é saber quais são os fatores realmente normais...o que é normal? Ou será que não conseguimos valorizar os nossos momentos no exato instante em que eles acontecem? Vai entender o ser humano...

    2. Vivi disse...

      Interessante o viés abordado. O homem que, ao acordar, encontra a si mesmo orbitando no vazio da existência. Acredito que ficaria mais interessante se o excerto de Sousa Tavares estivesse encaixado no texto. Ao meu ver, tornaria mais "original" a idéia da perda da imagem identitária vivida anos a fio por questões de "regras" sociais.

      A julgar pelo andamento da narrativa, esperei um pouquinho mais do final. No mais, considero uma boa participação a sua!

      Grande Medéia!

    3. Anônimo disse...

      Gostei de como o tema foi abordado.
      Parabéns :D
      Bjos

    4. Cris disse...

      Medéia,

      Nooooooossa!!! Que profundo!!!
      Gostei do ponto abordado, me surpreendeu muito. Juro que no início da narrativa, pensei na morte, e quando rumou para a perda da sanidade, achei muito interessante.
      Parabéns!!!

      Bjs

    5. disse...

      Medéia,


      Gostei da narrativa do seu texto. Estava indo muito bem, mas, o final deixou um pouco a desejar.
      Faltou um encaixe do seu texto com o parágrafo proposto para desenvolvimento do tema.
      Mas, não posso deixar de destacar que sua abordagem do tema foi interessante.
      Parabéns!!