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  1. Escuridão

    30/08/2012

    Uma coisa pegajosa e molhada escorre por entre os meus lábios. Demoro um pouco para entender onde estou, mas a realidade me atinge como um soco. O importante não é onde estou, mas o que eu sou.

    O sangue, a carnificina, a pessoa morta na minha frente e pedaços do seu cérebro em minhas mãos, meu rosto, minha boca. Fico enojada e assustada, mas percebo que menos do que antes, menos do que todas as outras vezes em que “acordei” desta mesma forma. Talvez esteja me acostumando.

    O alimento me acordou, percebi na terceira ou quarta vez em que isto aconteceu, mas nunca dura para sempre. Na verdade, não dura mais do que alguns minutos, até que a neblina volte e começe e me fazer dormir novamente. Não o dormir tranquilo e calmo de antes, é um dormir bagunçado, agitado, onde a minha mente está inconsciente, mas meu corpo continua andando, se arrastando e procurando por comida. Por vidas das quais eu possa me alimentar e ter mais alguns minutos de lucidez assim que entram no meu, semi-apodrecido, sistema digestivo.
    Não me lembro de como fiquei assim. Eu tinha uma família, amigos e um amor. Minha última lembrança como humana consiste em um beijo. Apaixonado e perdido, sem volta, de quando percebemos que não haveria escapatória.

    As portas balançavam, eram arranhadas e batidas por fora. As correntes não conseguiam segurar tamanha fúria. Fugir não era mais uma opção, estávamos encurralados.
    Minha mãe me abraçou, a mim e aos meus dois irmãos menores. Ela me pediu desculpas e eu entendi pelo que se desculpava. Obviamente ela não poderia fazer nada, mas seu instinto materno lhe dizia que tinha falhado, não protegera sua cria como deveria.
    Beijei meus irmãos, tão pequenos e indefesos. Não consigo imaginar o que lhes aconteceu depois, dói demais.

    Por último, me agarrei ao meu noivo. Ele também estava assustado, mas seu rosto me passava a força e coragem que ele fingia ter naquele momento. Por mim, ele não queria chorar, se desesperar e correr, e eu o amei ainda mais por isso. Um beijo forte e intenso, com a saudade que ainda teria. Minha última lembrança, pedaço de uma outra vida.

    O sangue no meu rosto e mãos já está ficando seco, os meus pensamentos anuviados. Não quero voltar para a cela escura da minha mente, mas, ficar aqui, com o gosto metálico de sangue na boca e lembranças de algo que nunca terei de volta, não é tão melhor assim.

    A sala escura e estranha na qual me encontro começa a desaparecer na neblina. Mas, antes de tudo sumir, consigo ver algo. Uma silhueta no canto, uma arma apontada diretamente para minha cabeça. Meu corpo começa a se contrair, pronto para fugir. Minha mente, quase apagada grita pela bala, pelo tiro direto no cérebro que acabaria com o pesadelo.

    Antes da escuridão, um barulho e mais nada.


  2. 5 comentários:

    1. oi, amore, tão lindo seu texto! foi uma bela sacada criar esse lance de que o zumbi, ao contrário do que eu sempre imaginei, não fica inconsciente o tempo inteiro, mas tem alguns repentes de consciência principalmente quando ele acorda!

      vc realmente humanizou o pobre (ou a pobre) zumbi!

      eu lembrei, claro, dos vampiros, que são mais conscientes de sua necessidade de se alimentar dos humanos; mas também lembrei do poema "O Corvo", de Edgar Allan Poe no final, hehe, que li há uns 2 meses.

      eu fiquei teimando pra ler o seu "...um barulho e mais nada" no final como "...um barulho e nada mais". já leu? -> http://www.insite.com.br/art/pessoa/coligidas/trad/921.php

    2. Srta. R. disse...

      Oi, amor!

      Que bom que você gostou. Acho que tem um pouco de vampírico mesmo, mas eu simplesmente adoro a idéia de consciência sobre a sua vida significar a morte de um outro ser. Culpo a Anne Rice por isso.

      Infelizmente nunca li Edgar Alan Poe. Um erro que planejo corrigir em breve, assim que você me emprestar o livro :)

    3. Eu tinha começado a escrever um texto assim, mas era um menino-zumbi, com alguns lapsos de consciência. Me enrolei demais nas descrições e decidi abortar o texto.
      Eu gostei a beça, faz meu estilo.
      Primeiro até achei que era uma adolescente ou menos por causa da mãe, mas depois do "me agarrei ao meu noivo" vi que era mais adulta.
      Gosto da ideia de descobrir a personagem aos poucos, pela própria fala dela, e não ter um noção clara desde o início.
      E o final ficou de forma a não revelar o que houve porque quem quer que tenha atirado pode ter errado e virado comida de zumbi... afinal o "mais nada" pode fazer parte da "não-consciência" da personagem.
      Muito bom!

    4. Vivi disse...

      Parece que o tema pede uma narrativa em primeira pessoa, né? Ao menos, é o que está predominando em nosso pedaço até agora.

      Rê, bela sacada a dos lapsos de consciência. Eu que não gosto de zumbis justamente pela ausência de consciência, apreciei a construção de um background para o personagem. Ele tem uma história, um passado e tinha uma vida, elementos interessante para se estabelecer o conflitos entre a consciência e a ausência dela. Conflitos que você soube aproveitar nos instantes finais.

      Com relação ao final, não tinha pensado como a Medéia. Mas, não é que pode ser?

      Bacana mesmo!

    5. Lyani disse...

      Rê, gostei muito de conhecer sua escrita. Assim como no texto da Vivi, você me cativou por conta do impossível. Eu adoro essa coisa do impossível rs O amor que se tornou impossível, a consciência que se tornou impossível, o viver, a vida, tudo que se perdeu, enfim! Acho poético, confesso que tenho um quê de Augusto dos Anjos em mim ;)
      Enfim, adorei sua narrativa, gostei demais da história, e fiquei ainda mais animada com o comentário da Medéia, pq eu tb não tinha pensado nessa sacada ótima do seu final, e é possível :)
      Adorei!
      Quero mais :)
      Bjos,
      Ly