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  1. Por Giovanni Nobile

    A casa é pequena. O muro é baixo. Vista de frente, o que se vê é um quintal também pequeno ao lado direito, em frente da casa. Do lado esquerdo, existe uma pequena área com vasos de flores no chão, umas samambaias na parede e algumas cadeiras preguiçosas para se sentar e olhar. Observar. E só. O lado de dentro da casa não nos interessa. O que lhes conto acontece do lado de fora, pra lá do muro, até.

    Toda manhã, uma menina passava em frente da casa. A casa era grande. O muro era alto. Vista de frente, via-se um imenso quintal e, nele, inúmeras, múltiplas histórias se passavam pela imaginação corisca da menina. Ao lado, plantas pelos vasos no chão. Plantas pelos vasos no teto, pelas paredes. Samambaias. E Cadeiras. Em uma delas, um senhor que descansava.

    Ao final de cada manhã a menina passava em frente da casa. Nada via do lado de lá do muro. Por isso a menina corria. Corria para o muro acabar logo e chegar até o portãozinho, por onde, através das grades, ela podia olhar toda a casa, os vasos, o velho senhor na cadeira, o quintal imenso e aquele pé de pitanga carregado, carregado, bem ao lado do muro.
    A menina lambia os beiços, diminuía o ritmo de sua corrida e passava a caminhar. Depois, a andar mais lentamente. Mais devagar. Lento. Quase se rastejando de tão minúsculos que eram seus passos. Fazia isso que era pra aproveitar melhor o tempo que podia observar aquelas pitangas madurinhas no alto, bem alto, lá longe, na pitangueira.

    A menina passava, então, do limite do portão, que se transformava novamente em muro, até que a casa já não era a mesma, mas, sim, a do vizinho. Daí já não tinha mais graça. A menina lembrava que tinha que correr e voltar para sua própria casa.
    O homem, lá de dentro, está sentado em sua cadeira de alumínio, daquelas que tem tiras de plástico trançadas, e se espreguiça. Ele já está cansado. Passa o tempo a cuidar do seu jardim, daquele quintal, das flores dali e das pitangas.

    A menina passa ali todo dia. Toda manhã.

    O velho das pitangas não é bobo. Ele sabe que ela deseja aqueles frutos. Ela também não é boba. Sabe que o velho sabe que ela quer as pitangas. E, nisso, o tempo passa e ela pensa num jeito de não deixar o velho pensar que ela vai pegar aquelas pitangas.
    Certa vez, a menina olhou para o alto do muro, pouco antes de chegar ao portãozinho da casa, e ficou ali, namorando as frutinhas. Torcendo para que alguma caísse. A menina era pequena. Do lado de dentro da casa o velho, sentado em sua cadeira não a via. Ou fingia. Ele se distraía ao ver um beija-flor chegar em uma das margaridas de seu jardim.

    Enquanto isso, a menina, lá fora, esticava-se toda, na ponta dos pés, para tentar chegar até o primeiro galho mais baixinho. Ela calçava meias brancas e um sapatinho preto. Um vestido vermelhinho. Esticava-se toda, nas pontas dos pés e mordia a língua do lado da boca, fazendo careta, esperando sua pitanga cair. Não caía.
    A cada manhã, ela passou a trazer no bolso esquerdo de seu vestidinho, uma pedra. Corria até acabar o muro e, quando este estava quase terminando, próximo do portãozinho, ela punha a pedra encostada na parede.

    Dia após dia, pedra depois de cada pedra, fez uma escada. E ali subia, esticava-se toda, mordiscava a língua, fazia careta, e não conseguia.
    Saía emburrada, brava com o bico armado, já armando novos planos para seu maior sonho. Alcançar aquelas pitangas. E que outros sonhos teria a menina? Sim! Alcançar as pitangas era seu maior sonho, a prova de que Deus existia.

    Resolveu, então, que além da escada de pedras que construíra, precisaria de algum graveto, algum pedaço de galho que lhe servisse para alcançar o símbolo de seu maior prazer. Sim, a pitangueira.
    Foi que, certa vez, de manhã, na escola, teve festa de aniversário de uma amiga. E, como festa de aniversário é, teve bolo, docinho, refrigerante e balões.
    A menina das meias brancas, do sapatinho preto e de vestido vermelho, feito as pitangas que almejava, pediu alguns balões para levar para casa. Escolheu três: um amarelo, um azul e um vermelho. A professora pegou um barbante e amarrou os três com um só nó.

    A menina saiu da escola feliz da vida com seus balões. Ela sempre gostou de balões. Para ela, bexigas tinham algo especial, que lhe trazia a sensação de liberdade, uma vez que balões, diferente de gente, podem voar livre pelos ares, feito anjos. Ela queria poder voar, para alcançar aquelas pitangas.
    Naquela manhã a menina não correu ao chegar no muro da casa. Até pensou em correr, mas ficou com medo de que seu símbolo de liberdade escapasse. Assim, preferiu andar calmamente, com os balões presos.

    O velho que sempre percebia a menina somente quando ela já estava na frente do portãozinho, nunca teve tempo de se levantar e ir até ela. Ele já estava velhinho, cansado e não podia se arriscar em movimentos muito bruscos.
    Só que desta vez o velho percebeu por cima do muro, três balões. Um vermelho, um azul e um amarelo. Pensou que poderia ser a menina. Levantou-se.
    Na medida em que a menina se aproximava do portãozinho, o velho com sua bengala caminhava em direção à pitangueira. Os dois movidos por seus prazeres: a menina, pelas pitangas; o velho, pelo sorriso de uma criança.

    Chegaram juntos. Foi quando o velho alcançou um punhado de pitangas suculentas, vermelhinhas, bem daquelas que a menina namorava em frente ao portão. Alcançou aquelas pitangas e esticou o braço na direção da menina, esperando que o sorriso brotasse de seu rosto.
    Antes, quando a menina estava caminhando pela calçada, ao lado do muro, lembrou-se do dia em que quase alcançou uma pitanga. Na verdade, chegou a alcançá-la, mas de tão madura, a pitanguinha caiu no chão para o lado de dentro da casa. Neste dia, nem precisou de graveto nenhum.

    Foi o dia em que a menina chegou mais perto da frutinha, com suas próprias mãos. Não conseguiu, mas mesmo assim saiu super feliz, já que viu que havia a possibilidade de um dia conseguir. Saiu lambendo não só os beiços, mas, agora, todos os dedos da pequena mãozinha que chegou a alcançar, mesmo sem agarrar, a pitanga madura.
    Na medida em que se aproximava do portãozinho e, portanto, da pitangueira, a menina pôde ver a penumbra do velho pelo portão. Abriu os olhos arregalados. Primeiro, de espanto, depois... nem ela mesmo sabia o que viera depois. Quando chegou até o portão e viu o velho com um punhado de pitanguinhas maduras na mão, soltou os balões.

    Soltou os balões e, junto, um choro, uma lágrima, um grito de ‘não’ sofrido e saiu correndo.
    Não era um choro de criança que o velho esperava. E nem era um velho lhe entregando pitangas, o que a menina sonhava. Os balões escaparam, assim como os sonhos dos dois escorreram por entre os dedos da menina. O velho não viu sorriso. E a menina perdeu a magia que existia na possibilidade de roubar pitangas.

    Os dois foram cada um para seu canto. A menina correu embora, aos prantos. E o velho, cabisbaixo, voltou para a cadeira. Ambos se perguntaram: será mesmo que existe Deus?
    Alguns dias se passaram e o velho teve uma idéia: correu para os fundos da casa, onde tinha algumas velhas ferramentas. Pegou uns pedaços de madeira, pregos, martelo, serrote e tinta.

    A menina, que há tempos nem olhava para a casa, resolveu passar ali pela frente, novamente, só para ver se as suas pitanguinhas continuavam do jeito que ela havia deixado.
    Ela chegou ao começo do muro. Pensou em correr, para chegar mais rápido até o portão. Ficou com receio. Preferiu caminhar. Na medida em que se aproximava do portão, sua barriga gelava. Parecia que era a primeira vez que a menina tentaria pegar as pitangas.

    Foi quando, ao chegar até o portão, a menina viu uma placa pregada logo ao lado da pitangueira, nas cores vermelha, azul e amarela, com a seguinte inscrição: proibido roubar pitangas!

    A menina sorriu! Esticou-se toda, na ponta de seus sapatinhos pretos, mordia a língua fazendo força para alcançar aquela frutinha vermelha no primeiro galho que pudesse relar. Ela conseguiu. Alcançou a pitanga, agarrou-a e a saboreou como nunca havia imaginado.
    Sentiu o sabor da frutinha, sentiu-se livre e leve feito balões que voam como anjos pelos ares. Sentiu-se mais próxima de Deus e sorriu.

    Para o velho, depois de presenciar a cena de sua cadeira de espreguiçar, ao lado das samambaias, seu questionamento de outrora estava respondido.

    Nesta instante, um beija-flor beijou uma de suas margaridas no jardim.

  2. 7 comentários:

    1. Anônimo disse...

      Que texto doce.
      Gostei do tom suave Giovanni e acho que foi um ótimo começo aqui na IL.
      Parabéns!!!!
      bjos,
      Ly

    2. Robson Ribeiro disse...

      Olá, Giovanni!

      Você tem mesmo que caprichar nos textos para estar à altura das meninas, certo? rs

      Bela estréia! Gostei muito, pois sua abordagem foi mesmo doce (como as pitangas!), como disse Lyani.

      Parabéns!

    3. Cris disse...

      Menino Giovani!!!!
      gostaria de definir seu texto em uma só palavra, mas impossível. Você conseguiu expor tantos sentimentos em seu texto, me deixou encantada. Quase chorei quando o encontro do velho com a menina falhou.
      Parabéns!!!
      Ótima estréia na IL!

      Bjs

      Cris

    4. Anônimo disse...

      Divino Cara...

      Colocações magicas e na realidade de um grande escritor.

      Parabéns.

    5. Eu sabia que faltava um "menino" na IL!

      Texto muito meigo e mágico.

      Linda história!

      Parabéns pela estréia...

    6. Vivi disse...

      Do título ao fim, impossível desprender-se da história. Gostei do encadameanto da narrativa que é de uma beleza comovente. O milagre muitas vezes está naquilo que somos incapazes de perceber.
      Gostei bastante!

    7. disse...

      Giovani,

      Parabéns!!! Parabéns!!
      O primeiro pela estréia aqui na IL, o segundo pelo lindo texto que nos presenteou.
      Me lembrou muito os textos do Rubens Alves: toca fundo na alma por captar e retratar de forma tão singela a vida e os seus momentos. E ler o seu texto foi uma experiência gostosa,assim como as pitangas do jardim do bom velhinho.
      Obrigada.
      Abs, Rê